Otto Rulhe - TROTSKY E A DITADURA DO PROLETARIADO

TROTSKY E A DITADURA DO PROLETARIADO

H. SMITH

Léon Trotsky insiste no seu erro. O que ele chama a actual "ditadura do proletariado" na Rússia reveste-se aos seus olhos de um peso, e portanto de uma significação, bem mais considerável que uma futura ditadura dos trabalhadores que continua ainda por definir. Assim, não contente em nos informar da existência de uma ditadura do proletariado na Rússia, ele constata que essa pretensa ditadura é significativa. É evidente, para Trotsky, que esse "exemplo vivo" influencia a sua concepção da futura forma de dominação operária. Com efeito, nada mais significativo dos acontecimentos futuros que os acontecimentos do presente.

Incapaz de sair da problemática russa, Trotsky calcula que a luta para o poder visa, por ordem de prioridade, primeiro o Partido, depois longe ainda, os sindicatos e, em último lugar, os conselhos operários. Ele concede o seu justo lugar ao factor "espontaneidade", mas precisa que, sem a vontade de aço e a experiência provada de um partido semi-militar, o movimento está votado ao fracasso. De uma tal concepção deriva necessariamente uma política intransigente, mesmo se Trotsky afirmava que essa intransigência se deve limitar a questões de princípio; disso deriva a organização burocrática, a recusa em reconhecer os seus erros para evitar manchar o prestígio da organização, e, finalmente, vemos a imposição de chefes cuja incapacidade é proporcional à sua importância hierárquica.

Ao longo das suas viagens, Gulliver descobriu o império de Blefuscu. Trotsky, na óptica da sua teoria, descobre uma forma de poder proletário na Rússia. Os respectivos discursos são do mesmo género. Porque, antes de tudo, deve ser compreendido que a ditadura do proletariado (e sobre este ponto é a própria história que julgará) não se pode conceber senão como um poder fundado ao nível de produção permitindo a generalização da abundância. É um poder que não pode efectivamente existir à escala mundial e no sentido comunista senão quando o capitalismo tiver percorrido o seu percurso de desenvolvimento.

Se se tiver em conta o facto de que o poder do proletariado depende não da vontade humana mas, tal como a ditadura do capitalismo, de um nível preciso de desenvolvimento industrial e das condições de troca que dele resultam (fenómenos que têm prioridade sobre a "vontade" e que determinam o que devem ser as relações sociais de produção), é pois ao nível de desenvolvimento, no modo de produção correspondente e no modo de troca que se encontrará a natureza manifesta do poder.

Aliás, cientificamente, o único meio de explicar a natureza de um sistema económico e político consiste em procurar como são produzidos os objectos (qual é a extensão da divisão social do trabalho) e como, se existe troca, são trocados esses objectos. Apenas uma tal investigação permite saber se os valores de troca são produzidos, se a força de trabalho se troca contra salários, se há acumulação de capital e apropriação de mais-valia. Não se pode adivinhar a natureza de um sistema social e pretender ter razão contra todos, como por encanto. Um sistema explica-se pelos seus mecanismos e dinâmica económicos, na falta do que, continua incompreensível.

OS GRANDES ESPÍRITOS SÃO ALÉRGICOS ÀS EVIDÊNCIAS

Incapaz de perceber essas evidências, Trotsky prefere ignorá-las. Os espíritos superiores apenas podem interessar-se pelas coisas profundas!

Para ele, estamos na era do imperialismo e os países desenvolveram-se desigualmente. Um país atrasado pode chegar ao poder e isso facilitará a tomada de poder num país mais avançado. O capitalismo é um sistema internacional. Mas se os operários tomam o poder num país atrasado, esperando que os outros povos lhes sigam as pisadas, isso não será uma ditadura do proletariado?

Quando os trabalhadores tomarem o poder nas ilhas Fidji, qual será o alcance de tal acontecimento no plano mundial? Os trabalhadores tomaram o poder nas ilhas Fidji - nem mais nem menos.

Trotsky tem uma concepção romanesca da revolução e dos processos sociais. Uma greve geral num país altamente industrializado é muito mais determinante do ponto de vista da revolução mundial que a tomada do poder numa ilha Fidji, tivesse ela a dimensão dum sexto do Globo (a Rússia). Alcançar o poder num país sem poderio industrial, que está maduro para o capitalismo, é garantir que os operários deverão assumir as tarefas governamentais da burguesia, sofrendo e não ultrapassando, o sistema de produção burguês. É precisamente, o desenvolvimento desigual entre os países que causa essas anomalias deploráveis mas inevitáveis.

Não está excluído que, aquando de um eventual Outubro num outro país atrasado, os operários do "Ocidente" sigam as pisadas. A questão não está aí (a qual não poderá nunca ser resolvida teoricamente). O problema é o seguinte: uma vez que o Ocidente não veio em socorro dos operários russos, o que é que daí resulta para a natureza do actual regime russo, e como vê Trotsky esse regime?

Para Trotsky, a equação é lógica: os operários russos tomaram o poder, portanto há uma ditadura do proletariado na Rússia. Ora a premissa desta equação é falsa se se não faz intervir os camponeses com os seus objectivos e a pequena burguesia urbana com as sua aspirações. É igualmente falso dizer que, em Outubro, os operários ganharam sem essas classes, ou contra elas. Na verdade, para Trotsky, o problema do poder operário não se põe antes de tudo em função do seu conteúdo económico, mas em função do seu contorno fenomenológico: "Uma coisa existe porque me parece que existe".

Mas, objectará ele, os operários sob a direcção dos bolcheviques, não tomaram o poder? Eis evidentemente uma pergunta sem equívocos, destinada a dissipar qualquer ideia falsa. Ora, essa pergunta obriga a perguntar se os operários instauraram, armas na mão, novas relações de produção. Formular a interrogação é já responder-lhe: não. Porque mesmo se eles expropriarão a aristocracia existente e alguns núcleos de concentração capitalista, os operários não puderam estabelecer as novas relações de produção socialista. Sustentar que a nacionalização da industria e o controlo estatal dos bancos são, em si e sem mais, medidas socialistas, leva a aprovar o que Mussolini e, ainda mais, Hitler, reivindicam nos seus programas. A única questão com sentido é a seguinte: a maior parte da industria tornou-se propriedade dos trabalhadores armados?

Historicamente, a Revolução russa foi a captura de uma fábrica em construção (a Rússia) porque não era possível ocupar uma fábrica terminada (o Ocidente). Contudo há ainda um aspecto a examinar. A 7 de Novembro, o proletariado russo bateu os seus inimigos e guardou as espingardas. Imediatamente ouviram-se os ecos da "Internacional" e "A Cavalaria de Boudieny". Em todas as tribunas lançavam-se discursos sobre o socialismo. Qual o sentido de todos esses acontecimentos ?

Ao contrário da burguesia em expansão que, procedendo em dois tempos, assegura primeiro o seu poder económico e toma em seguida o poder do Estado, o proletariado, pelo simples facto de que lhe é estranha a propriedade, deve executar as duas tarefas simultaneamente. Desta necessidade resulta o "elo mais fraco" que causou as tentativas, na verdade prematuras, mas justificáveis, de tomada do poder.

A interpretação correcta dos acontecimentos é esta: quando os operários russos agiram, representavam o proletariado mundial agindo onde podia (na Rússia), porque não o podia ainda fazer onde devia (nos países industrializados). Quando uma tal tentativa teve êxito num país atrasado, a natureza do poder é ao mesmo tempo evidente e ambígua. Ela é de tal modo dependente dos operários dos outros países que, com a sua intervenção, torna-se positiva, e, sem ela, negativa.

A ditadura do proletariado não consiste simplesmente em se vingar dos inimigos. O que é determinante na natureza de tal ditadura é a sua capacidade de destruir o antigo sistema de produção (ao contrário do que sustentava Lenine: destruir primeiro o Estado, para ele condição necessária e suficiente. O exemplo da Rússia provou que o velho Estado pode ser destruído sem que mude o velho sistema) e em "libertar" as capacidades produtivas. Sendo a ditadura do proletariado, por assim dizer, a via mais segura para a abundância, uma vez expropriados os antigos possuidores, ela pode na verdade revestir formas diferentes. Mas que seja efectivamente uma ditadura do proletariado não deve tropeçar frente aos obstáculos principais. Quando uma ditadura do proletariado repousa numa economia capitalista (produção de mais-valia e sua apropriação, acumulação do capital) e se vê constrangida, no interesse da sua economia, a impor aos trabalhadores a pobreza (pauperização relativa) em lugar da abundância e, em lugar da igualdade material, uma desigualdade sempre crescente, pode-se legitimamente perguntar o que tem tal ditadura de proletária.

Na realidade, Trotsky gostaria de fazer crer que o capitalismo específico à Rússia é o socialismo uma vez que os seus fundadores se reclamam de Marx. A partir desta tese, não é pois a natureza do sistema que serve de prova mas a integridade dos seus chefes.

Para Trotsky admitir a existência do capitalismo na Rússia levaria a admitir que outros operários russos, hoje mortos ou em vias de morrer em Verkhny, Uralsk, tinham visto correctamente e que ele se tinha enganado. O que, tanto no plano pessoal como político, seria muito embaraçoso para o "Velho". E depois, aliás, pode muito bem acontecer que a sua ignorância de economia marxista o impeça de chamar as coisas pelos seus nomes.

Com efeito, Trotsky não se debruça na análise dos novos capitalistas russos, mas na recordação das suas conquistas para o socialismo. Não é pois de admirar que, para ele, a personalidade do assassino Staline importe mais que a exploração das massas russas. E, aliás, onde estão esses novos capitalistas russos?

O que é um capitalista? Defini-lo como um homem que tem muito dinheiro é tão pueril como descrevê-lo tendo uma grande barriga. O capitalista não é senão o dinheiro através do qual o capital realiza a acumulação. Em segundo lugar, ele pertence à classe que retira da produção o seu bem-estar material privilegiado. Por outra palavras, um sistema em que se produz a acumulação do capital e em que alguns ganham muito mais que a maioria, revela a presença de capitalistas. Nesse quadro, importa pouco saber se o capitalista é o único proprietário titular da industria, ou se a partilha com uma centena de outros sócios; importa também pouco saber se ele possui pessoalmente um bilião de dólares ou somente 200 mil rublos e dois criados.

QUE É A DITADURA DO PROLETARIADO?

A ditadura do proletariado não é um produto acabado e concreto como um clube de operários ou o Palácio dos Sovietes; é um processus que, como todos os processos sociais, só reveste formas determinadas na conjuntura imediata e momentânea.

É através desse processus que o marxismo encontrará o modo pelo qual a sociedade inteira evoluirá em direcção ao comunismo. A ditadura do proletariado não acaba senão quando o país colonizado mais atrasado se tornar socialista. Um tal raio de acção implica numerosas variações na forma do poder, regressões e derrotas temporárias. Que a primeira tentativa de ditadura do proletariado se pretenda a receita para a tomada do poder é, na verdade, uma brincadeira que provocará risos durante muitos séculos. Mas essa é a vaidade desses "grandes" dos quais, depois da morte de Lenine e Trotsky e da instauração de um autêntico poder proletário, nenhum restará.

É evidente que já agora, o próprio termo de "ditadura do proletariado" se torna suspeito para as massas. O mérito vem-lhe naturalmente da política conduzida pelo Komintern depois da revolução e desde a derrota do proletariado russo. Seguramente um novo termo surgirá para substituir este que se tornou odioso.

Uma análise teórica falsa deve, necessariamente, conduzir a conclusões tácticas e organizacionais erradas; é o que mostra claramente os esforços patéticos empregues por Trotsky para vencer Staline ao organizar a revolução mundial.

As suas análises em termos de "burocracia operária corrompida" e de bonapartismo conduziram-no a querer, respectivamente, reformar o Komintern e construir um novo. O eco de uma ou outra tentativa é demasiado audível para possibilitar discussões. A entrada da sua pequena equipa no despojamento da II Internacional foi o gesto de um homem frustrado. Mas esta frustração apesar de tudo foi proveitosa uma vez que permitiu, através dessas tentativas incertas, tomar consciência das numerosas possibilidades, além da organização leninista, de que os operários dispõem para tomarem a indústria e a "transformarem".

Para já, Trotsky não pode mais ser considerado como um marxista. Foi um "grande homem" que já não tem o seu lugar no contexto actual.

Manter a ilusão de uma ditadura do proletariado na Rússia é para Staline, o meio de matar os operários conscientes e instaurar uma máquina de contra-revolução mundial; para Trotsky, é o labirinto terminológico auto-destruidor. Para os marxistas, o actual regime russo é um capitalismo de Estado. É seu dever revelar esta mistificação aos operários que querem e lutam por uma sociedade melhor.

H. Smith ( I.C.C. vol. 3, n.º 4 - Abril de 1937)