PANEGÍRICO

Guy Debord

PANEGÍRICO

«Panegírico exprime mais do que elogio. O elogio contém sem dúvida o económico da personagem, mas não exclui uma certa crítica, alguma censura. O panegírico não contém censura nem crítica.»

Littré Dictionnaire de la langue française

«Por que razão inquirirem-me sobre a minha origem? Como as das folhas, assim são as humanas gerações. Para o chão as lança o vento, mas a fecunda floresta a outras dará nascença, e a primaveril estação logo regressa; assim também a raça dos humanos nasce e vai passando.»

Ilíada, Canto VI

I

«Quanto ao seu plano, bem podemos gabar-nos demostrando que o não tem, que a bem dizer escreve a esmo, baralhando os factos, relatando-os sem tino e sem ordem; confundindo ao tratar de certa época, aquilo que pertence a outra; desdenhando justificar as acusações que lança, ou os louvores que grava; adoptando sem exame, e sem o espírito crítico tão necessário ao historiador, os vãos juízos da opinião antecipada, da rivalidade ou da aversão, bem como os exageros do humor ou da malquerença; a uns atribuindo acções e a outros discursos incompatíveis com suas posições e seus caracteres; nunca citando testemunho que não seja o seu, nem outra autoridade que não venha dos seus próprios assertos.»

General Gourgaud

Examen critique de l’ouvrage de M. le comte Philippe de Sérgur



Toda a minha vida sempre vi tempos inquietos, tumultos extremos na sociedade, e imensas destruições; entrei nessas desordens. E tais circunstâncias certamente bastariam para impedir que o mais transparente dos meus actos ou raciocínios se visse aprovado universalmente, fosse onde fosse. Ademais, assim o creio, alguns terão sido mal compreendidos.

No início da sua história da campanha militar de 1815, Clausewitz faz o seguinte resumo do método que é o seu: «O essencial, em toda a crítica estratégica, reside em colocarmo-nos exactamente no ponto de vista dos que agem; sendo certo que amiúde se trata de bem árdua tarefa.» A dificuldade consiste em conhecer «as circunstâncias todas em que estavam os que agem» num dado momento, de modo a ficar-se assim em condições de avaliar judiciosamente a série das suas opções na condução da guerra: como fizeram aquilo que fizeram, e que outra coisa teriam eles porventura podido fazer. É pois necessário saber, antes de mais, o que intentavam, e, obviamente, tudo quanto presumiam; sem esquecer aquilo que não sabiam. E o que então ignoravam não era apenas o resultado em porvir das suas próprias operações embatendo nas operações que Ihes seriam opostas; era também muito daquilo que deveras já fazia sentir o seu peso contra eles, nas disposições ou nas forças do campo adverso, e que todavia continuava a apresentar-se-lhes oculto; e no fundo desconheciam o valor exacto que convinha ser atribuído às suas próprias forças, até à altura em que estas pudessem demonstra-lo, no momento do seu emprego, cujo desenlace, de resto, por vezes modifica esse valor tanto como o põe à prova.

O homem que tenha levado a cabo determinada acção, a respeito da qual haja sido possível sentir ao longe as consequências, foi com frequência quase o único a conhecer aspectos bastante importantes dessa acção, que razões diversas haviam incitado a manter dissimulados, enquanto outros aspectos desde então foram caindo no olvido, simplesmente por terem já passado esses tempos ou por já terem morrido os que os viveram. E o próprio testemunho dos vivos nem sempre é acessível. Um, por na verdade não saber escrever; outro por se ver metido em interesses ou ambições mais actuais; um terceiro por ter medo; e um último por não querer expor a certos riscos a reputação pessoal. Conforme veremos, a nenhum destes óbices estou eu preso. Falando pois tão friamente quanto possível do que muita paixão suscitou, vou contar o que fiz. Injustas censuras em grande número, ou até todas, logo seguramente se hão-de ver varridas como pó. E persuade-me de que as grandes linhas da história do meu tempo disso hão-de deduzir-se mais claramente.

Ver-me-ei obrigado a entrar nalguns pormenores. Coisa que poderá levar-me muito longe; mas não rejeito encarar a amplidão de tal cometimento. Há-de levar o tempo que for preciso. Mesmo assim não direi, como Sterne ao começar a redigir Vida e Opiniões de Tristram Shandy: «Lá estugar o passe não vou eu, mas sim sossegadamente escrever e dar a lume a minha vida, à proporção de dois tomos por ano; assim queira o leitor aturar esta andadura, e outrossim possa eu chegar a toleráveis providências com o meu livreiro.» Porque está fora de questão comprometer-me a publicar dois tomos por ano, ou aceitar sequer um qualquer outro ritmo menos precipitado.

O meu método será muito simples. Nomearei o que amei; e o resto, a esta luz, há-de suficientemente mostrar-se e fazer-se entender.

«O tempo enganador com astúcia nos esconde os seus vestígios, mas célere passa», diz o poeta Li Po, que acrescenta: «Porventura guardais a índole jovial da mocidade / notórias porém se apresentam vossas cãs; para quê vos lastimardes?» Não me inclino a lastimar seja o que for, e ainda menos a maneira como pude viver.

Sabendo como são exemplares esses vestígios, muito menos quereria eu dissimulá-los. Que alguém decida contar o que deveras e com rigor tenha sido a vida que levou, sempre foi raro, abundantes como são os escolhos do assunto. E talvez ainda mais precioso o seja agora, por se tratar duma época em que tanta coisa se alterou, na surpreendente celeridade das catástrofes; época esta a respeito da qual se poderá dizer que quase todas as balizas e padrões de súbito se viram arrastados pelo próprio terreno onde a sociedade antiga estava edificada.

Seja como for, é-me fácil ser sincero. Com nada deparo que em qualquer matéria possa incitar-me ao mais ligeiro estorvo. Nunca acreditei nos valores admitidos pelos meus contemporâneos, e hoje em dia já nem há quem reconheça qualquer um desses valores. Lacenaire, talvez ainda com escrúpulo excessivo, exagerou, segundo me parece, a responsabilidade que directamente tivera na morte violenta de um muito reduzido número de pessoas: «Penso que valho mais do que a maioria dos homens que conheci, mesmo com o sangue que me tinge», escrevia ele a Jacques Arago. («Connosco porém estáveis, Sr. Arago, naquelas barricadas, em 1832. Lembrai-vos do convento de São Merry... Ignorais o que a miséria é, Sr. Arago; fome foi coisa que jamais tivestes», responderiam um pouco mais tarde, não ao primeiro, mas ao irmão, nas barricadas de Junho de 1848, os operários que este viera arengar, qual romano tribuno, a respeito do abuso que consiste em insurgirem-se os homens contra as leis da República.)

Nada há mais natural, para um indivíduo, do que ver tudo a partir da sua própria pessoa, adoptada como centro do mundo; desse modo nos sentimos capazes de condenar o mundo sem sequer ouvir os discursos embusteiros que profere. É apenas preciso demarcar os limites que necessariamente balizam esta autoridade: o seu próprio lugar no fluir do tempo, e também na sociedade; aquilo que fez e conheceu, as suas paixões dominantes. «Quem poderá pois escrever a verdade, senão aqueles que a tenham sentido?» O autor das mais belas Memórias escritas no século XVII, que não escapou à inepta censura de haver falado da sua conduta pessoal sem manter as aparências da mais fria objectividade, fizera essa oportuna observação; que sublinhava citando a tal respeito a opinião do presidente De Thou, segundo a qual «as únicas histórias verídicas são aquelas que foram escritas por homens capazes de sinceridade suficiente para falar com verdade de si mesmos».

Talvez haja quem se espante por eu parecer implicitamente comparar-me, aqui e ali, a propósito de certo pormenor, a esta ou àquela grande figura do passado, ou simplesmente a personalidades que historicamente foram assinaladas. Fá-lo-á sem razão. Não pretendo assemelhar-me seja a quem for, e além disso creio que a época presente muito pouco se pode comparar às do passado. Mas muitos personagens do passado, entre si diferindo extremamente, são ainda bastante comummente conhecidos. Representam, em suma, uma significação instantaneamente comunicável sobre as condutas ou tendências humanas. Aqueles que acaso ignorem o que eles tenham sido, facilmente poderão verifica-lo; e para quem escreve, é sempre um mérito fazer-se entender.

Ver-me-ei na obrigação de utilizar bastantes citações. Nunca, a meu ver, para conferir autoridade a qualquer demonstração; mas meramente para fazer sentir com que terão sido tecidos, em profundidade, esta aventura que conto e eu mesmo. As citações mostram-se úteis nos períodos de ignorância ou de crenças obscurantistas. As alusões, sem aspas, a outros textos que sabemos muito célebres, conforme vemos na poesia clássica chinesa, em Shakespeare ou em Lautréamont, deverão reservar-se aos tempos mais ricos em cabeças capazes de reconhecer a frase anterior, bem como a distância que a sua nova aplicação introduziu. Hoje em dia expor-nos-íamos, neste tempo em que a própria ironia vai deixando de ser percebida, a ver sem hesitação ser-nos atribuída a fórmula, que aliás e com a mesma pressa poderia ser reproduzida erroneamente. A vetusta falta de graça visível no procedimento das citações exactas será compensada, segundo espero, pela qualidade da sua selecção. Na ocasião oportuna, neste discurso hão-de surgir; e computador nenhum teria podido fornecer-me essa variedade pertinente.

Aqueles que a respeito de nada querem escrever depressa o que ninguém lerá uma só vez até ao fim, nos jornais ou nos livros, gabam com grande convicção o estilo da linguagem falada, por o acharem muito mais moderno, directo, fácil. Mas eles próprios não sabem falar. Os seus leitores tão-pouco, visto a linguagem efectivamente falada nas modernas condições de vida ter socialmente chegado a um resumo da sua representação, eleita em segundo grau pelo sufrágio mediático; somada, dará umas seis ou oito maneiras de falar, incessantemente repetidas, e menos de duas centenas de vocábulos, nestes incluindo uma maioria de neologismos; vendo-se a terça parte deste conjunto sujeita a renovação de seis em seis meses. Tudo isso favorece um certo rápido liame. Por meu lado, e pelo contrário, vou escrever sem afectação e sem canseira, como a coisa mais natural e mais fácil do mundo, a língua que aprendi e na maioria das circunstâncias sempre falei. Não sou eu que tenho de a modificar. Os Ciganos consideram com razão que só devemos dizer a verdade na nossa própria língua; na do inimigo deverá reinar sempre a mentira. Outra vantagem: tendo como referência o vasto corpus dos textos clássicos publicados em francês ao longo dos cinco séculos anteriores ao meu nascimento, mas sobretudo dos dois últimos, será sempre fácil traduzirem-me convenientemente em qualquer idioma do futuro, mesmo quando o francês já for língua morta.

Quem poderá ignorar, no nosso século, que o homem que veja o seu interesse em afirmar instantaneamente seja o que for, sempre o irá clamar à toa? O enorme incremento dos meios de que dispõe a dominação moderna marcou de tal maneira o estilo dos seus enunciados, que, tendo o entendimento relativo à progressão dos sombrios raciocínios do poder sido durante largo tempo um privilégio das pessoas de facto inteligentes, esse entendimento, agora, tornou-se forçosamente familiar aos mais entorpecidos. E neste sentido que podemos pensar que a verdade deste relatório sobre o meu tempo contém prova bastante no seu estilo. O tom deste discurso será em si mesmo garantia suficiente, visto para todos ficar claro que só quando se vive assim se pode ser exímio neste género de enunciação.

É sabido, com conhecimento de causa, que a guerra do Peloponeso ocorreu. Mas o seu desenrolar implacável e as lições que legou só graças a Tucídides se conhecem. Nenhuma interpretação será possível; nenhuma porém seria útil, visto a veracidade dos factos, bem como a coerência das ideias, se haverem de tal modo imposto aos contemporâneos e à próxima posteridade, que qualquer outra testemunha se sentiu desanimada ante a dificuldade de transmitir uma diferente versão do ocorrido, ou até de capciosamente contestar um pormenor.

E creio, a propósito da história que passo a expor, que do mesmo modo a isso convirá atermo-nos. Porque ninguém, por lato tempo, terá a audácia de se lançar a demonstrar, seja sobre qual for o aspecto destas coisas, o contrário do que eu tenha dito; quer descobrindo o mínimo elemento inexacto nos factos narrados, quer sustentando um outro ponto de vista a seu propósito.

Por mais convencional que se julgue o procedimento, penso não ser inútil esboçar aqui, desde já e com clareza, o início de tudo: a data e as condições gerais em que começa a presente narrativa, a qual, depois disso, confiarei a toda a confusão que o tema exige. Razoavelmente se poderá pensar que muitas coisas surgem na juventude; e que por muito tempo nos vão acompanhando. Nasci em 1931, em Paris. A fortuna da minha família estava já muito minada pelas consequências da crise económica mundial, que começou por surgir nos Estados Unidos, pouco antes; e os destroços dessa fortuna não tinham ar de poderem prolongar-se muito para além da minha maioridade, o que efectivamente se concretizou. Nasci, por conseguinte, virtualmente arruinado. A bem dizer não ignorei o facto de não poder ficar à espera duma herança, e assim foi. Mas muito simplesmente não atribuí importância nenhuma às questões de um futuro, bem abstractas. E deste modo me fui encarreirando, durante toda a adolescência, lenta mas inevitavelmente, para uma vida de aventuras, de olhos abertos; caso possa dizer que então os tinha abertos a tal respeito, e a respeito, também, da maioria das restantes questões. Não podia sequer pensar em estudar uma única que fosse das sábias qualificações conducentes à obtenção dos empregos, visto todas elas serem estranhas aos meus gostos ou contrárias às minhas opiniões. As pessoas que de longe mais estimava no mundo eram Arthur Cravan e Lautréamont, e bem sabia que todos os seus amigos, caso tivesse aceitado seguir estudos universitários, me teriam desprezado tanto como se me tivesse resignado a exercer uma actividade artística; e se eu não tivesse podido contar com esses amigos, certamente não teria aceitado consolar-me com outros. Doutor em nada, firmemente me mantive afastado duma qualquer aparência de participação nos círculos que então tinham a reputação de intelectuais ou artísticos. Confesso que o mérito que nesta matéria alcançava era bastante atenuado pela minha grande preguiça, tal como o era também pelas minhas muito diminutas capacidades para afrontar os trabalhos de semelhantes carreiras.

O facto de sempre ter atribuído bem parca importância as questões de dinheiro, e nenhum ensejo, absolutamente, à ambição de vir um dia a ocupar qualquer função brilhante na sociedade, é uma tão rara particularidade entre os meus contemporâneos que sem dúvida será tido na conta de incrível, até no meu caso. É porém verídico, e pôde tão constante e duravelmente ser verificado que o público bem terá de a isso se acostumar. Imagine que a causa residia na minha indolente educação, nela deparando com terreno favorável. Nunca vi os burgueses a trabalhar, com a baixeza que forçosamente contém o seu género especial de trabalho; sendo quiçá por isso que nessa indiferença pude aprender com proveito alguma coisa a respeito da vida, mas afinal tão-só por ausência e privação. O momento da decadência de qualquer forma de superioridade social seguramente possui algo mais aprazível que os seus vulgares começos. Fiquei para sempre afeiçoado a esta preferência, que muito cedo sentira, e posso dizer que a pobreza me deu principalmente grandes ócios, por não ter de gerir bens aniquilados nem sonhar restaurá-los, participando no governo do Estado. É verdade que saboreei prazeres pouco conhecidos das pessoas que obedeceram às desgraçadas leis desta época. É verdade também que rigorosamente me ative a vários deveres, de que essas pessoas nem fazem ideia. «Porque da nossa vida», enunciava rudemente em seu tempo a Regra do Temple, «não vedes senão a casca que está por fora... mas não conheceis os rijos mandamentos que por dentro estão.» Devo ainda assinalar, citando assim na sua totalidade as favoráveis influências nisso reconhecidas, a evidência de ter tido nessa altura ocasião de ler vários bons livros, a partir dos quais é sempre possível uma pessoa vir por si mesma a encontrar todos os outros, ou até a escrever os que ainda façam falta. O muito completo extracto cessa aqui.

Vi concluir-se, antes dos vinte anos, esta parte pacífica da minha juventude; e a partir daí a obrigação que tive foi a de seguir sem freio todas as minhas propensões, embora em condições difíceis. Senti primeiro simpatias pelo círculo de gente, muito atractivo, onde um extremo niilismo já nada queria saber, nem prosseguir, sobretudo, de quanto fora anteriormente admitido como ocupação da vida ou das artes. Este meio facilmente me reconheceu como um dos seus. Ali se extinguiram as minhas últimas possibilidades de voltar um dia ao fluxo normal da existência. Assim o pensei, e o que veio depois, disso foi prova.

Devo com certeza ter menos dotes de cálculo que os outros, visto esta opção tão expedita, que a tanto me empenhava, haver sido espontânea, resultante duma irreflexão que nunca depois desdisse; e que mais tarde, após ter tido o vagar de Ihe avaliar as consequências, jamais deplorei. Poder-se-iá dizer, pensando em termos de riqueza ou de reputação, que nisso eu nada tinha a perder; mas o caso é que também nada tinha a ganhar.

Este meio, o dos empreendedores de demolições, mais claramente que os seus antecessores das duas ou três precedentes gerações, tinha-se por essa altura associado de muito perto às classes perigosas. Ao viver com elas, uma pessoa leva em grande parte a mesma vida. E disso, obviamente, ficaram vestígios duradouros. Mais de metade das pessoas que ao longo dos anos fui conhecendo de perto, tinham estado, uma ou várias vezes, nas cadeias de diversos países; muitas, sem dúvida, por motivos políticos, mas ainda assim a maioria por delitos ou crimes de direito comum. Conheci, por conseguinte, sobretudo os rebeldes e os pobres. Vi em meu redor em grande número indivíduos que morriam jovens, e nem sempre por suicídio, de resto frequente. Nesta peculiar matéria da morte violenta, noto aqui, sem poder adiantar uma explicação plenamente racional do fenómeno, que o número dos meus amigos mortos a tiro constitui uma percentagem grandemente inusitada, não se tratando de operações militares, bem entendido.

As nossas únicas manifestações, que se mantiveram raras e breves nos primeiros anos, pretendiam ser completamente inaceitáveis; primeiro sobretudo pela forma que assumiam, e mais tarde, ao irem-se aprofundando, sobretudo pelo conteúdo. Não foram aceites. «A destruição foi a minha Beatriz», escrevia Mallarmé, ele próprio guia de alguns outros em explorações bastante arriscadas. Para quem se dedica unicamente a fazer tais demonstrações históricas, e portanto fora delas recusa o trabalho existente, a necessidade de saber viver no país bem certa se apresenta. Mais adiante abordarei a questão com pormenor. Expondo apenas para já o assunto na sua grande generalidade, direi que sempre me limitei a dar a impressão vaga de que possuía grandes qualidades intelectuais, e até artísticas, de que preferira privar a minha época, visto esta aos meus olhos não merecer semelhante ocupação. Houve sempre quem nisto lamentasse a minha ausência, e paradoxalmente me ajudasse a mantê-la. Mas isso só pôde ser levado a cabo porque nunca fui procurar ninguém, fosse onde fosse. A minha roda de gente sempre foi a dos que vieram por si mesmos, sabendo fazer-se aceitar. Ignoro se mais alguém se terá atrevido a comportar-se como eu, nesta época. Convirá dizer também que a degradação de todas as condições existentes justamente surgiu na mesma altura, como a querer corroborar a minha loucura singular.

Tenho de admitir igualmente, porque nada pode ficar puramente inalterável no fluxo do tempo, que uns vinte anos depois, ou pouco mais, uma fracção avançada de um público especializado pareceu começar a já não pôr de parte a ideia de que eu bem podia ter vários talentos a sério, notáveis sobretudo por comparação com a grande pobreza dos achados e das fastidiosas repetições que durante muito tempo se viram na obrigação de admirar; e isso apesar de o único emprego verificável dos meus dotes dever ser encarado como coisa plenamente nefasta. E fui eu então, naturalmente, que recusei aceitar reconhecer a existência destas pessoas, que, por assim dizer, começavam a reconhecer na minha qualquer coisa. É certo que nela não estavam prontas a aceitar tudo, e eu sempre francamente dissera que seria tudo ou nada, assim me colocando, definitivamente, fora do alcance das suas concessões eventuais. Quanto à sociedade, os meus gostos e ideias não mudaram, mantendo-se os mais opostos ao que ela era, bem como a tudo aquilo em que anunciava querer transformar-se.

O leopardo morre com as malhas que tem, e eu nunca tive tenção de me tornar melhor, nem de tal coisa me julguei capaz. Nunca deveras reclamei qualquer espécie de virtude, excepto talvez a de haver pensado que só alguns crimes, de um género novo, que no passado seguramente ninguém pudera ouvir citar, não seriam porventura indignos de mim; e a de não ter variado, após tão ruim começo. Numa altura crítica dos tumultos da Fronda, Gondi, que tão grandes provas deu das suas capacidades no manejo dos negócios humanos, e nomeadamente no seu papel favorito de perturbador do público repouso, afortunadamente improvisou ante o Parlamento de Paris uma bela citação atribuída a autor antigo, cujo nome em vão todos buscaram, mas que da melhor maneira podia ser aplicada ao seu próprio panegírico: «ln difficillimis Reipublicae temporibus, urbem non deserui; in prosperis nihil de publico delibavi; in desperatis, nihil timui.» Ele próprio a traduz assim: «Nos funestos tempos, jamais a cidade abandonei; nos bons, nunca obtive lucros; nos desesperados, nada temi.»



II

«Tais foram os notáveis sucessos deste Inverno, e assim se concluiu o segundo ano da guerra cuja história Tucídides escreveu.

Tucídides

Guerra do Peloponeso

No bairro de perdição aonde aportou a minha juventude, como para acabar de instituir-se, dir-se-ia terem marcado encontro os precursores sinais duma próxima derrocada de todo o edifício da civilização. Em permanência ali se encontravam indivíduos que só pela negativa podiam ser definidos, pela simples razão de não terem qualquer ofício, de não se ocuparem com estudos nenhuns e de não praticarem qualquer arte. Muitos eram oriundos das guerras recentes, vindos de vários exércitos que entre si haviam disputado o continente: o alemão, o francês, o russo, o exército dos Estados Unidos, os dois exércitos espanhóis, e ainda outros. As restantes pessoas, cinco ou seis anos mais novas, tinham chegado directamente ali porque a ideia de família começará a dissolver-se, como todas as outras. Nenhuma doutrina antes perfilhada moderava a conduta fosse de quem fosse; nem vinha propor às suas existências qualquer objectivo ilusório. Diversas práticas de um instante mostravam-se continuamente prontas a expor, à luz da evidência, a calma defesa da sua razão de ser. O niilismo é categórico para moralizar, mal o aflore a ideia de se justificar: um assaltava os bancos glorificando-se por não roubar os pobres, um outro nunca matara ninguém quando não estava enfurecido. Apesar de toda esta eloquência disponível, eram de um momento para o outro as mais imprevisíveis pessoas, e por vezes bastante perigosas. Foi o facto de ter andado num tal meio que depois me permitiu dizer às vezes, com a mesma altivez do demagogo nos Cavaleiros de Aristófanes: «Também eu cresci na via pública!»

No fim de contas fora a poesia moderna, a agir desde há cem anos, que ali nos conduzira. Éramos uns quantos a pensar que o seu programa precisava de ser executado em plena realidade; e que mais nada devíamos fazer. Há quem se tenha por vezes espantado, mas no fundo só a partir de data muitíssimo recente, ao descobrir a atmosfera de ódio e maldição que constantemente me rodeou e, sempre que possível, me dissimulou. Pensam alguns que e por causa da grave responsabilidade que amiúde me foi atribuída quanto às origens, ou ao comando, até, da revolta de Maio de 1968. Julgo, quanto a mim, que terá sido o que fiz em 1952 aquilo que na minha pessoa desagradou de modo tão perdurável. Certa rainha de Franca, enfurecida, lembrava um dia ao mais sedicioso dos seus súbditos: «Sentimos revolta só de imaginar que alguém possa revoltar-se.»

Foi justamente o que aconteceu. Um outro desprezador do mundo, outrora, que dizia haver sido rei em Jerusalém, evocara o fundo do problema, quase com estas mesmas palavras: Por todo o lado o espírito volteia e a si mesmo regressa através de longuíssimos circuitos. Todas as revoluções penetram na história, e nem por isso a historia está pejada delas; os rios das revoluções voltam aonde começaram, para de novo fluírem.

Artistas ou poetas capazes de viver no meio da violência, sempre os houvera. O impaciente Marlowe morreu de faca na mão, ao regatear um dia certa conta. Admire-se em geral que Shakespeare tinha em mente o sumiço do seu rival, sem sequer recear que alguém pudesse reprovar-lhe a falta de graça, quando integrou este chiste em Como Lhe Aprouver: «Isso deita logo um homem por terra, e põe-no mais inteiriçado que conta desmedida em taverna de má fama.» O fenómeno, que desta vez era absolutamente novo e naturalmente deixou poucos vestígios, reside justamente no facto de o único princípio acolhido por todos declarar que já não podia existir poesia ou arte; e que se impunha encontrar coisa melhor.

Tínhamos várias feições comuns com aqueloutros sequazes da vida perigosa cujo tempo se passara, precisamente quinhentos anos antes de nós, na mesma cidade e na mesma margem. Não posso evidentemente ser comparado a alguém como François Villon, que tal domínio exerceu sobre a sua arte. Nem tão irremediavelmente como ele me empenhei no grande banditismo; nem, em suma, fizera tão bons estudos universitários. Mas entre os meus amigos havia esse «nobre varão» que se mostrou perfeito equivalente de Régnier de Montigny, bem como muitos outros rebeldes já prometidos à má sina; e os prazeres e o esplendor das jovens vogais perdidas que tão boa companhia nos deram nos nossos botequins, e que também não deviam andar longe das que os outros conheceram com os nomes de Marion I’Idole ou Carherine, Biétrix e Bellet. O que então éramos, di-lo-ei no calão dos cúmplices de Villon, que desde há muito per certo deixou de ser uma linguagem secreta impenetrável, sendo até pelo contrário, bastante acessível às pessoas informadas. Deste jeito, porem, disporei a inevitável dimensão criminológica numa tranquilizadora distância filológica.*

Lá topei e conheci alguns não poucos de quem o carrasco não tirava o olho, fulheiros e bons furtadores; mãos come não havia, e sócios fixes, nunca temendo adiantar golpe de risco; amiúde abarbatados pelas garras dos esbirros, jamais mexendo a língua. Foi aí que aprendi a arte de bem-falante, a ponto de ainda agora, sobre tais iscas, preferir fechar a moquideira. O nosso rebuliço e a boa vai ela já por terra se deitaram. Mas vivazmente me lembro desses companhões sem cheta, que tão prestes percebiam este mundo de trapaças; de quando a gente andava à coca, noite feita, por Paris.

Prezo-me de a este respeito nada haver esquecido, e de nada ter aprendido. Eram aquelas ruas frias e a neve, e no rio a cheia: «A meio do álveo/profundo é o rio.» Eram aquelas meninas da escola, fugindo dela, de olhos ufanos e tão doces lábios; as rusgas frequentes da policia; o fragor de catarata do tempo. «Nunca mais tão jovens beberemos.»

Pode dizer-se que sempre amei as estrangeiras. Vinham da Hungria e de Espanha, da China e da Alemanha, da Rússia e de Itália as que cumularam de alegrias a minha juventude. E mais tarde, já com cãs, acabei per perder a pouca razão que o longo caudal do tempo tão dificilmente pudera porventura transmitir-me; por uma de Córdoba. Omar Khayyam, após muito ponderar, reconhecia: «Em verdade, os ídolos que tanto tempo amei / muito me rebaixaram aos olhos dos homens. / A glória afoguei em taça pouco funda / e a fama, por uma cantiga a vendi.» Quem melhor do que eu poder sentir a justeza dessa observação? Mas quem terá também desprezado como eu a totalidade das apreciações vigentes na minha época, bem como as reputações que ela concedia? No começo da viagem estava já contido o seguimento.

Situavam-se essas coisas entre o Outono de 1952 e a Primavera de 1953, em Paris, a sul do Sena e a norte da rua de Vaugirard, a leste do cruzamento da Cruz Vermelha e no lado ocidental da rua Dauphine. Assim escreveu Arquíloco: «Dá-nos lá de beber. / Verte e vinho tinto sem levantar a borra. / Que em tal posto, sóbrios não podemos nós ficar.»

Entre a rua do Four e a de Buci, onde a nossa juventude de todo se perdeu, bebendo copos, podíamos sentir com toda a certeza que nada melhor algum dia faríamos.

* Na impossibilidade duma correspondência vocabular em português, o trecho em questão é vertido numa adaptação semântica do original, que foi especialmente redigido no calão dos Coquilards (séc. XV), associação sui generis de malfeitores de que terá feito parte o grande poeta François Villon. (NdT)