Leonel Santos - Os vendedores de promessas

Os vendedores de promessas

Eu vejo na rua um bando de truões
Que dão às criancinhas beijinhos e balões
E beijam as mulheres com euforia
Na venda de qualquer mercadoria
Que apregoam com voz esganiçada
Que da primeira vez ninguém paga nada
São molhos e molhos de promessas
Que são oferecidas em grandes remessas
Com longos sorrisos e largos abraços
De papagaios palrantes e alguns palhaços
Toques de pandeiro, gaitas e tambores
Juntas com papeis, bandeiras e flores
E fotografias de importante gente
Tornada humanista repentinamente
Que á guisa de actores gritam aos ouvintes
Que vão ajudar os contribuintes
E nos embalam com doces melopeias
Como outrora aos nautas faziam as sereias
Prometendo montões de bem-estar
Com um sorriso oco, cínico e alvar
Tudo a bem dos pobres e dos fracos
Dão canetas, aventais, bonés e sacos
E prometem justiça com firmeza
Habitação aos pobres, cama e mesa
E qualquer partido que ganhar
Reformas e pensões tudo a dobrar
E trabalho p’ra malta a pontapés
A ganhar por dia o salário dum mês
Para já dizem jornais e televisões
Que há falta de padres, missas e sermões
Quanto às habitações vão ser baratas
Talvez, um pouco acima das batatas
E serão ainda grátis, a saúde e escola
Construção de igrejas campos de bola
E de porta em porta, rua em rua
Prometem uns o Sol, outros a Lua
Avisando que quem souber escolher
Até pode, só com o voto, enriquecer
Escuse portanto, o Euromilhões
E saiba escolher nas eleições
Verá que a Crise logo se evapora
E o dinheiro borbulha a toda a hora
Como a água a sair de uma nascente
Ou, a banha da cobra antigamente
Que curava, sem falhar, qualquer doença
Inclusive velhos e cegos de nascença
O voto e exactamente igual
Semeiam-se algumas notas no quintal
E passado um mês ou mês e meio
Vai-se lá buscar um saco cheio
E os bandos vão percorrendo as feiras
Prometem venda cara às vendedeiras
E a compra barata à freguesia
É o último grito em democracia
Comprar caro e vender barato
Será a solução deste Sistema ingrato
Quanto aos impostos, os partidos
Acham que devem ser todos banidos
E cada um terá maior fartura
Que aquela que precisa e que procura
Porque a Crise não tem escapadela
Com toda esta gente a malhar nela
Gente séria, gente sábia e tão dotada
Que consegue ver tudo onde está nada
A não ser as trevas e o escuro
E um sonho morto… chamado futuro
Mas… tira-te tu p’ra me pôr eu
Foi a única história que esta gente leu
Todos tão diferentes e todos tão iguais
Apenas votam juntos para ganhar mais
E enquanto tudo a funda no abismo
Vão grunhindo tretas de humanismo
Que sacrifício duro, que luta tão atroz
Esta gente trava aqui por todos nós
Há que imortalizar tão nobre espécie
Quando tanta Palha nos oferece!

Abul-Alá al-Maari
Lisboa, Agosto 2009

Leonel Santos - O Fim Do Valor

O Fim Do Valor

Eis o tudo que é nada, o dinheiro deus
A quem o homem vive agrilhoado
Como no Cáucaso duro, o velho Zeus
Ao pobre Prometeu fez no passado
Um cativo aqui dos erros seus
Outro por leis imigas condenado

Um que o fogo nos deu p’ra ser usado
Em prol da ventura e bem humano
Outro por interesses arrastado
Teceu por si próprio o seu engano
Percebendo tarde que o Mercado
Em vez de seu escravo é seu tirano

Assim o dinheiro o escravizou
Ao jugo de trabalho prepotente
Trabalho que morreu mas não levou
Com a sua morte o mal presente
Porque o Sistema nunca funcionou
Apesar de humano, humanamente

Nunca Dédalo um dia imaginou
Que o seu Labirinto poderia
Ser o próprio mundo onde o habitou
Num longínquo futuro que não previa
E Ariadne já se retirou
Com o fio que Teseu se conduzia

Se o Homem do um mundo produtor
Deixou de produzir, hoje consome
Mas ser sem produzir consumidor
Com que Valor se calça, veste e come
Eis a babilónia do Valor
Onde Babel foi buscar o nome

Retirada por fim a produção
Da humana mão que conduzia
Nada mais terá valoração
Porque o Valor morreu no mesmo dia
Possa embora a terra dar o grão
E a máquina fazer mercadoria

Valor, rei supremo, rei senhor
Que a cegueira do lucro alimentou
Tu és o rei do nada, o mal maior
De quanto mal a Terra já gerou
A ilusão dum mundo superior
A última ilusão que se apagou

Não vê a gente sábia e ilustrada
Que na teta do Valor sempre mamou
Que foi a sua nau já afundada
Na infundada rota que traçou
Porque zarpou do nada para o nada
E o nada foi o tudo onde chegou

Quando por Lâmia doce, Lâmia bela
Júpiter, deus supremo, suspirava
Juno ciumenta da donzela
A transformá-la em monstro se apressava
Tornando em desgraça a graça dela
Que vingança menor lhe não chegava

Também o nosso deus, deus derradeiro
Disfarçado entre nós com manha e arte
É um monstro que abraça o mundo inteiro
Como a ira de Juno em toda a parte
O tudo que é nada, o deus dinheiro
Atrás de que se arrasta o fero Marte


Abul-Ala al-Maari

Lisboa, Agosto 2009

Leonel Santos - Os lobos de Milosevic e os chacais da Nato

Os lobos de Milosevic e os chacais da Nato

«Então ó Nato:

Matas ou não matas?

Mato!»

A minha missão é matar, é destruir

Semear o ódio na senda do porvir.

Cortar as crianças e os velhos em pedaços

Espalhar cabeças, e pernas e braços

Por entre as ruínas de mil habitações

Reduzir tudo a chamas, a cinzas e a carvões

Numa orgia de morte e de tormento

Arrancar lágrimas, atirar ao vento

Gritos e mais gritos de desespero e dor

Eu não sou aquele Adamastor

Que ousou lutar nos arraiais das História

Aqui há cobardia...

Não há batalhas, nem luta, nem glória

Mato indefesos, famintos, desgraçados

Queimo os montes, as serras e os prados

Os filhos na barriga das mães

Os homens e os cães

As creches, as escolas, cemitérios e hospitais

Despejo os meus arsenais

Para que possa enche-los de novo e ainda

matar mais

Mandam-me os donos da CIA

As Mafias do armamento

É este mar de tormento

A minha mercadoria

Manda-me o M-16

E a Mossad judia

Faço à bomba as novas leis

Construo a Terceira Via

Queimo pontes, queimo estradas

Sanatórios, refinarias

E nas ruínas sombrias

Enterro as gentes queimadas

E para que a guerra se alongue e multiplique

Mil vezes agradeço a Milosevic

Meu amigo, meu irmão, meu aliado

Que tão boa ajuda me tem dado

Nesta nova matança cor-de-rosa

De que Hitler ficaria envergonhado

Fiz da ONU a minha cangalheira

Posso já queimar a Terra inteira

Em nome da Justiça e da Razão

Só onde houver tiranos é que não

Que um tirano não mata outro tirano

Matar gente indefesa é mais humano

Eu hoje sou carrasco e sou juiz

Hitler não passou de um aprendiz

Na arte de matar, ao pé de mim

Farei a Europa num jardim

Com bombas de napalme e com estilhaços

Sou eu que mando aí nesses palhaços

Que vão roubando e rindo e que por isso

Não podem prescindir do meu serviço

Se outrora fui mal vista e mal amada

Hoje sou "socialista" e sou civilizada

E vingo disfarçada Hitler nos Balcãs

Até que venham outros amanhãs

E as minhas bombas generosas

Façam da Europa um mar de rosas

Lisboa, Maio de 1999

Abul-Ala al-Maari

LEONEL SANTOS

LEONEL SANTOS


Leonel Santos: Nascido no lugar de Pinheirinhos do concelho de Sesimbra a 22 de Novembro de 1935. L.S. é operário, exerce a profissão de canteiro e trabalhou em várias pedreiras e oficinas de Sesimbra, Cascais e Lisboa, entre outras.

Interessado pela cultura proletária leu, estudou e acompanhou esse movimento principalmente após Abril de 1974, tendo escrito vários poemas e publicado o livro "Nós Povo" em 1975, (Editora Vento Leste), baseado essencialmente nas suas experiências pessoais e colectivas.






O Fim do Valor - (Leonel Santos; Agosto de 2009)

Os vendedores de promessas - (Leonel Santos; Agosto 2009)

A Última Galé - (Leonel Santos; Maio 2009)

O Último Osso - Leonel Santos; Abril de 2009

As Ruínas do Futuro - (Leonel Santos; Abril 2009)

O Colapso - (Leonel Santos; Fevereiro 2009)

O Homem e a Besta - (Leonel Santos; Janeiro 2009)

Da Crise ao Monstro - (Leonel Santos; Dezembro 2008)

Diário da Selva (II) - (Leonel Santos; Outubro 2008)

Diário da Selva (I) - (Leonel Santos; Outubro 2008)

O Homem Predador - (Leonel Santos; Setembro 2008)

Do Fetiche - (Leonel Santos; Maio 2008)

A Morte do Trabalho - (Leonel Santos; Maio 2008)

A Selva - (Leonel Santos; Abril 2008)

A Decadência - (Leonel Santos; Abril 2008)

Epitáfio para o Trabalho - (Leonel Santos; Março 2005)

A Palavra do Valor - (Leonel Santos; Junho 2004)

O Monstro Difuso - (Leonel Santos; Março 2004)

Do valor da guerra e da paz - (L. Santos; Março de 2003)

La_comedia_de_la_tragedia - (L. Santos; Março de 2003)

A Comédia da Tragédia - (L. Santos; Fevereiro de 2003)

O último dos deuses - bombas e droga - (L. Santos; Junho de 2002)

O último dos deuses - o mercado - (L. Santos; Maio de 2002)

O último dos deuses - mercado e guerra - (L. Santos; Maio de 2002)

Perigos da Paz - Leonel Santos

Argélia - Leonel Santos

Os lobos de Milosevic e os chacais da NATO

A Última Grilheta - Leonel Santos

F. Pessoa segundo Leonel Santos

O gigante "vermelho" - (Leonel Santos; Abril de 1985)

Karl Marx - O TRABALHO ALIENADO

O TRABALHO ALIENADO

Karl Marx
1844

(XXII) Partimos dos pressupostos da Economia Política. Aceitamos sua terminologia e suas leis. Aceitamos como premissas a propriedade privada, a separação do trabalho, capital e terra, assim como também de salários, lucro e arrendamento, a divisão do trabalho, a competição, o conceito de valor de troca, etc. Com a própria economia política, usando suas próprias palavras, demonstramos que o trabalhador afunda até um nível de mercadoria, e uma mercadoria das mais deploráveis; que a miséria do trabalhador aumenta com o poder e o volume de sua produção; que o resultado forçoso da competição é o acumulo de capital em poucas mãos, e assim uma restauração do monopólio da forma mais terrível; e, por fim, que a distinção entre capitalista e proprietário de terras, e entre trabalhador agrícola e operário, tem de desaparecer, dividindo-se o conjunto da sociedade em duas classes de possuidores de propriedades e trabalhadores sem propriedades.

A economia Política parte do fato da propriedade privada; não o explica. Ela concebe o processo material da propriedade privada, como ocorre na realidade, por meio de fórmulas abstratas e gerais que, então, servem como leis. Ela não compreende essas leis; isto é, ela não mostra como surgem da natureza da propriedade privada. A Economia Política não dá nenhuma explicação da base para a distinção entre trabalho e capital, entre capital e terra. Quando, por exemplo, a relação entre salários e lucros é definida, isso é explicado em função dos interesses dos capitalistas; por outras palavras, o que devia ser explicado é admitido. Analogamente, a competição é referida a todos os pontos e explicada em função das condições externas. A Economia Política nada nos diz a respeito da medida em que essas condições externas, e aparentemente acidentais, são simplesmente a expressão de uma evolução necessária. Vimos como a própria troca se afigura um fato acidental. As únicas forças propulsoras reconhecidas pela Economia Política são a avareza e a guerra entre os gananciosos, a competição.

Justamente por deixar a Economia Política de entender as interconexões dentro desse movimento, foi possível opor a doutrina de competição à de monopólio, a doutrina de liberdade da profissão à das guildas, a doutrina de divisão da propriedade imobiliária a dos latifúndios; pois a competição, liberdade de ocupação e divisão da propriedade imobiliária foram concebidas tão-somente como conseqüências fortuitas produzidas pela vontade e pela força, em vez de conseqüências necessárias, inevitáveis e naturais do monopólio, do sistema de guildas e da propriedade feudal.

Por isso, temos agora de apreender a ligação real entre todo esse sistema de alienação - propriedade privada, ganância, separação entre trabalho, capital e terra, troca e competição, valor e desvalorização do homem, monopólio e competição - e o sistema do dinheiro.

Não iniciaremos nossa exposição, como o faz o economista, por uma legendária situação primitiva. Uma tal situação arcaica nada explica; simplesmente afasta a pergunta para uma distância turva e enevoada. Ela afirma como fato ou acontecimento o que deveria deduzir, ou seja, a relação necessária entre duas coisas; por exemplo, entre a divisão do trabalho e a troca. Da mesma maneira, a teologia explica a origem do mal pela queda do homem; isto é, ela assegura como fato histórico aquilo que deveria elucidar.

Partiremos de um fato econômico contemporâneo. O trabalhador fica mais pobre à medida que produz mais riqueza e sua produção cresce em força e extensão. O trabalhador torna-se uma mercadoria ainda mais barata à medida que cria mais bens. A desvalorização do mundo humano aumenta na razão direta do aumento de valor do mundo dos objetos. O trabalho não cria apenas objetos; ele também se produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e, deveras, na mesma proporção em que produz bens.

Esse fato simplesmente subentende que o objeto produzido pelo trabalho, o seu produto, agora se lhe opõe como um ser estranho, como uma força independente do produtor. O produto do trabalho humano é trabalho incorporado em um objeto e convertido em coisa física; esse produto é uma objetificação do trabalho. A execução do trabalho é simultaneamente sua objetificação. A execução do trabalho aparece na esfera da Economia Política como uma perversão do trabalhador, a objetificação como uma perda e uma servidão ante o objeto, e a apropriação como alienação.

A execução do trabalho aparece tanto como uma perversão que o trabalhador se perverte até o ponto de passar fome. A objetificação aparece tanto como uma perda do objeto que o trabalhador é despojado das coisas mais essenciais não só da vida, mas também do trabalho. O próprio trabalho transforma-se em um objeto que ele só pode adquirir com tremendo esforço e com interrupções imprevisíveis. A apropriação do objeto aparece como alienação a tal ponto que quanto mais objetos o trabalhador produz tanto menos pode possuir e tanto mais fica dominado pelo seu produto, o capital.

Todas essas conseqüências decorrem do fato de o trabalhador ser relacionado com o produto de seu trabalho como com um objeto estranho. Pois está claro que, baseado nesta premissa, quanto mais o trabalhador se desgasta no trabalho tanto mais poderoso se torna o mundo de objetos por ele criado em face dele mesmo, tanto mais pobre se torna a sua vida interior, e tanto menos ele se pertence a si próprio. Quanto mais de si mesmo o homem atribui a Deus, tanto menos lhe resta. O trabalhador põe a sua vida no objeto, e sua vida, então, não mais lhe pertence, porém, ao objeto. Quanto maior for sua atividade, portanto, tanto menos ele possuirá. O que está incorporado ao produto de seu trabalho não mais é dele mesmo. Quanto maior for o produto de seu trabalho, por conseguinte, tanto mais ele minguará. A alienação do trabalhador em seu produto não significa apenas que o trabalho dele se converte em objeto, assumindo uma existência externa, mas ainda que existe independentemente, fora dele mesmo, e a ele estranho, e que com ele se defronta como uma força autônoma. A vida que ele deu ao objeto volta-se contra ele como uma força estranha e hostil.

(XXIII) Examinemos agora, mais de perto, o fenômeno da objetificação, a produção do trabalhador e a alienação e perda do objeto por ele produzido, nisso implícitas. O trabalhador nada pode criar sem a natureza, sem o mundo exterior sensorial. Este ultimo é o material em que se concretiza o trabalho, em que este atua, com o qual e por meio do qual ele produz coisas.

Todavia, assim como a natureza proporciona os meios de existência do trabalho, na acepção de este não poder viver sem objetos aos quais possa aplicar-se, igualmente proporciona os meios de existência em sentido mais restrito, ou sejam os meios de subsistência física para o próprio trabalhador. Assim, quanto mais o trabalhador apropria o mundo externo da natureza sensorial por seu trabalho, tanto mais se despoja de meios de existência, sob dois aspectos: primeiro, o mundo exterior sensorial se torna cada vez menos um objeto pertencente ao trabalho dele ou um meio de existência de seu trabalho; segundo, ele se torna cada vez menos um meio de existência na acepção direta, um meio para a subsistência física do trabalhador.

Sob os dois aspectos, portanto, o trabalhador se converte em escravo do objeto: primeiro, por receber um objeto de trabalho, isto é, receber trabalho, e em segundo lugar por receber meios de subsistência. Assim, o objeto o habilita a existir, primeiro como trabalhador e depois como sujeito físico.

O apogeu dessa escravização é ele só poder se manter como sujeito físico na medida em que é um trabalhador, e de ele só como sujeito físico poder ser um trabalhador.

(A alienação do trabalhador em seu objeto é expressa da maneira seguinte, nas leis da Economia Política: quanto mais o trabalhador produz, tanto menos tem para consumir; quanto mais valor ele cria, tanto menos valioso se torna; quanto mais aperfeiçoado o seu produto, tanto mais grosseiro e informe o trabalhador; quanto mais civilizado o produto, tão mais bárbaro o trabalhador; quanto mais poderoso o trabalho, tão mais frágil o trabalhador; quanto mais inteligência revela o trabalho, tanto mais o trabalhador decai em inteligência e se torna um escravo da natureza.)

A economia Política oculta a alienação na natureza do trabalho por não examinar a relação direta entre o trabalhador (trabalho) e a produção. Por certo, o trabalho humano produz maravilhas para os ricos, mas produz privação para o trabalhador. Ele produz palácios, porém choupanas é o que toca ao trabalhador. Ele produz beleza, porém para o trabalhador só fealdade. Ele substitui o trabalho humano por maquinas, mas atira alguns dos trabalhadores a um gênero bárbaro de trabalho e converte outros em máquinas. Ele produz inteligência, porém também estupidez e cretinice para os trabalhadores.

A relação direta do trabalho com seus produtos é a entre o trabalhador e os objetos de sua produção. A relação dos possuidores de propriedade com os objetos da produção e com a própria produção é meramente uma conseqüência da primeira relação e a confirma. Apreciaremos adiante este segundo aspecto. Portanto, quando perguntamos qual é a relação importante do trabalho, estamos interessados na relação do trabalhador com a produção.

Até aqui consideramos a alienação do trabalhador somente sob um aspecto, qual seja o de sua relação com os produtos de seu trabalho. Não obstante, a alienação aparece não só como resultado, mas também como processo de produção, dentro da própria atividade produtiva. Como poderia o trabalhador ficar numa relação alienada com o produto de sua atividade se não se alienasse a si mesmo no próprio ato da produção? O produto é, de fato, apenas a síntese da atividade, da produção. Conseqüentemente, se o produto do trabalho é alienação, a própria produção deve ser alienação ativa - a alienação da atividade e a atividade da alienação A alienação do objeto do trabalho simplesmente resume a alienação da própria atividade do trabalho.

O que constitui a alienação do trabalho? Primeiramente, ser o trabalho externo ao trabalhador, não fazer parte de sua natureza, e por conseguinte, ele não se realizar em seu trabalho mas negar a si mesmo, ter um sentimento de sofrimento em vez de bem-estar, não desenvolver livremente suas energias mentais e físicas mas ficar fisicamente exausto e mentalmente deprimido. O trabalhador, portanto, só se sente à vontade em seu tempo de folga, enquanto no trabalho se sente contrafeito. Seu trabalho não é voluntário, porém imposto, é trabalho forçado. Ele não é a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio para satisfazer outras necessidades. Seu caráter alienado é claramente atestado pelo fato, de logo que não haja compulsão física ou outra qualquer, ser evitado como uma praga. O trabalho exteriorizado, trabalho em que o homem se aliena a si mesmo, é um trabalho de sacrifício próprio, de mortificação. Por fim, o caráter exteriorizado do trabalho para o trabalhador é demonstrado por não ser o trabalho dele mesmo mas trabalho para outrem, por no trabalho ele não se pertencer a si mesmo mas sim a outra pessoa.

Tal como na religião, a atividade espontânea da fantasia, do cérebro e do coração humanos, reage independentemente como uma atividade alheia de deuses ou demônios sobre o indivíduo, assim também a atividade do trabalhador não é sua própria atividade espontânea. É atividade de outrem e uma perda de sua própria espontaneidade.

Chegamos a conclusão de que o homem (o trabalhador) só se sente livremente ativo em suas funções animais - comer, beber e procriar, ou no máximo também em sua residência e no seu próprio embelezamento - enquanto que em suas funções humanas se reduz a um animal. O animal se torna humano e o humano se torna animal.

Comer, beber e procriar são, evidentemente, também funções genuinamente humanas. Mas, consideradas abstratamente, à parte do ambiente de outras atividades humanas, e convertidas em fins definitivos e exclusivos, são funções animais.

Consideremos, agora, o ato de alienação da atividade humana prática, o trabalho, sob dois aspectos: 1) a relação do trabalhador com o produto do trabalho como um objeto estranho que o domina. Essa relação é, ao mesmo tempo, a relação com o mundo exterior sensorial, com os objetos naturais, como um mundo estranho e hostil; 2) a relação do trabalho como o ato de produção dentro do trabalho. Essa é a relação do trabalhador com sua própria atividade humana como algo estranho e não pertencente a ele mesmo, atividade como sofrimento (passividade), vigor como impotência, criação como emasculação, a energia física e mental pessoal do trabalhador, sua vida pessoal (pois o que é a vida senão atividade?) como uma atividade voltada contra ele mesmo, independente dele e não pertencente a ele. Isso é auto-alienação, ao contrário da acima mencionada alienação do objeto.

(XXIV) Temos, agora, de inferir uma terceira característica do trabalho alienado, partindo das duas já vistas.

O homem é um ente-espécie não apenas no sentido de que ele faz da comunidade (sua própria, assim como as de outras coisas) seu objeto, tanto prática quanto teoricamente, mas também (e isto é simplesmente outra expressão da mesma coisa) no sentido de tratar-se a si mesmo como a espécie vivente, atual, como um ser universal e conseqüentemente livre.

A vida da espécie, para o homem assim como para os animais, encontra sua base física no fato de o homem (como os animais) viver da natureza inorgânica, e como o homem é mais universal que um animal, assim também o âmbito da natureza inorgânica de que ele vive é mais universal. Vegetais, animais, minerais, ar, luz, etc., constituem, sob o ponto de vista teórico, uma parte da consciência humana como objetos da ciência natural e da arte; eles são a natureza inorgânica espiritual do homem, se meio intelectual de vida, que ele deve primeiramente preparar para seu prazer e perpetuação. Assim também, sob o ponto de vista prático, eles formam parte da vida e atividade humanas. Na prática, o homem vive apenas desses produtos naturais, sob a forma de alimento, aquecimento, roupa, abrigo, etc. A universalidade do homem aparece, na prática, na universalidade que faz da natureza inteira o seu corpo: 1) como meio direto de vida, e igualmente, 2) como o objeto material e o instrumento de sua atividade vital. A natureza é o corpo inorgânico do homem; quer isso dizer a natureza excluindo o próprio corpo humano. Dizer que o homem vive da natureza significa que a natureza é o corpo dele, com o qual deve se manter em contínuo intercâmbio a fim de não morrer. A afirmação de que a vida física e mental do homem e a natureza são interdependentes, simplesmente significa ser a natureza interdependente consigo mesma, pois o homem é parte dela.

Tal como o trabalho alienado: 1) aliena a natureza do homem e 2) aliena o homem de si mesmo, de sua própria função ativa, de sua atividade vital, assim também o aliena da espécie. Ele transforma a vida da espécie em uma forma de vida individual. Em primeiro lugar, ele aliena a vida da espécie e a vida individual, e posteriormente transforma a segunda, como uma abstração, em finalidade da primeira, também em sua forma abstrata e alienada.

Pois, trabalho, atividade vital, vida produtiva, agora aparecem ao homem apenas como meios para a satisfação de uma necessidade, a de manter sua existência física. A vida produtiva, contudo, é vida da espécie. É vida criando vida. No tipo de atividade vital, reside todo o caráter de uma espécie, seu caráter como espécie; e a atividade livre, consciente, é o caráter como espécie dos seres humanos. A própria vida assemelha-se somente a um meio de vida.

O animal identifica-se com sua atividade vital. Ele não distingue a atividade de si mesmo. Ele é sua atividade.

O homem, porém, faz de sua atividade vital um objeto de sua vontade e consciência. Ele tem uma atividade vital consciente. Ela não é uma prescrição com a qual ele esteja plenamente identificado. A atividade vital consciente distingue o homem da atividade vital dos animais: só por esta razão ele é um ente-espécie. Ou antes, é apenas um ser auto-consciente, isto é, sua própria vida é um objeto para ele, porque ele é um ente-espécie. Só por isso, a sua atividade é atividade livre. O trabalho alienado inverte a relação, pois o homem, sendo um ser autoconsciente, faz de sua atividade vital, de seu ser, unicamente um meio para sua existência.

A construção prática de um mundo objetivo, a manipulação da natureza inorgânica, é a confirmação do homem como um ente-espécie, consciente, isto é, um ser que trata a espécie como seu próprio ser ou a si mesmo como um ser-espécie. Sem dúvida, os animais também produzem. Eles constróem ninhos e habitações, como no caso das abelhas, castores, formigas, etc. Porém, só produzem o estritamente indispensável a si mesmos ou aos filhotes. Só produzem em uma única direção, enquanto o homem. produz universalmente. Só produzem sob a compulsão de necessidade física direta, ao passo que o homem produz quando livre de necessidade física e só produz, na verdade, quando livre dessa necessidade. Os animais só produzem a si mesmos, enquanto o homem reproduz toda a natureza. Os frutos da produção animal pertencem diretamente a seus corpos físicos, ao passo que o homem é livre ante seu produto. Os animais só constróem de acordo com os padrões e necessidades da espécie a que pertencem, enquanto o homem sabe produzir de acordo com os padrões de todas as espécies e como aplicar o padrão adequado ao objeto. Assim, o homem constrói também em conformidade com as leis do belo.

É justamente em seu trabalho exercido no mundo objetivo que o homem realmente se comprova como um ente-espécie. Essa produção é sua vida ativa como espécie; graças a ela, a natureza aparece como trabalho e realidade dele. O objetivo do trabalho, portanto, é a objetificação da vida como espécie do homem, pois ele não mais se reproduz a si mesmo apenas intelectualmente, como na consciência, mas ativamente e em sentido real, e vê seu próprio reflexo em um mundo por ele construído. Por conseguinte, enquanto o trabalho alienado afasta o objetivo da produção do homem, também afasta sua vida como espécie, sua objetividade real como ente-espécie, e muda a superioridade sobre os animais em uma inferioridade, na medida em que seu corpo inorgânico, a natureza, é afastado dele.

Assim como o trabalho alienado transforma a atividade livre e dirigida pelo próprio indivíduo em um meio, também transforma a vida do homem como membro da espécie em um meio de existência física.

A consciência que o homem tem de sua espécie é transformada por meio da alienação, de sorte que a vida como espécie torna-se apenas um meio para ele.

(3) Então, o trabalho alienado converte a vida do homem como membro da espécie, e também como propriedade mental da espécie dele, em uma entidade estranha e em um meio para sua existência individual. Ele aliena o homem de seu próprio corpo, a natureza extrínseca, de sua vida mental e de sua vida humana.

(4) Uma conseqüência direta da alienação do homem com relação ao produto de seu trabalho, à sua atividade vital e a sua vida como membro da espécie, é o homem ficar alienado dos outros homens. Quando o homem se defronta consigo mesmo, também está se defrontando com outros homens.

O que é verdadeiro quanto à relação do homem com seu trabalho, com o produto desse trabalho e consigo mesmo, também o é quanto à sua relação com outros homens, com o trabalho deles e com os objetos desse trabalho.

De maneira geral, a declaração de que o homem fica alienado da sua vida como membro da espécie implica em cada homem ser alienado dos outros, e cada um dos outros ser igualmente alienado da vida humana.

A alienação humana, e acima de tudo a relação do homem consigo próprio, é pela primeira vez concretizada e manifestada na relação entre cada homem e os demais homens. Assim, na relação do trabalho alienado cada homem encara os demais de acordo com os padrões e relações em que ele se encontra situado como trabalhador.

(XXV) Principiamos por uma fato econômico, a alienação do trabalhador e de sua produção. Exprimimos esse fato em termos conceituais como trabalho alienado e, ao analisar o conceito, limitamo-nos a analisar um fato econômico.

Examinemos, agora, mais além, como esse conceito de trabalho alienado deve expressar-se e revelar-se na realidade. Se o produto do trabalho me é estranho e enfrenta-me como uma força estranha, a quem pertence ele? Se minha própria atividade não me pertence, mas é uma atividade alienada, forçada, a quem ela pertence? A um ser, outro que não eu. E que é esse ser? Os deuses? É evidente, nas mais primitivas etapas de produção adiantada, por exemplo, construção de templos, etc., no Egito, Índia, México, é nos serviços prestados aos deuses, que o produto pertencia a estes. Mas os deuses nunca eram por si sós os donos do trabalho humano; tampouco o era a natureza. Que contradição haveria se quanto mais o homem subjugasse a natureza com seu trabalho, e quanto mais as maravilhas dos deuses fossem tornadas supérfluas pelas da industria, ele se abstivesse da sua alegria em produzir e de sua fruição dos produtos por amor a esses poderes!

O ser estranho a quem pertencem o trabalho e o produto deste, a quem o trabalho é devotado, e para cuja fruição se destina o produto do trabalho, só pode ser o próprio homem. Se o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, mas o enfrenta como uma força estranha, isso só pode acontecer porque pertence a um outro homem que não o trabalhador. Se sua atividade é para ele um tormento, ela deve ser uma fonte de satisfação e prazer para outro. Não os deuses nem a natureza, mas só o próprio homem pode ser essa força estranha acima dos homens.

Considere-se a afirmação anterior segundo a qual a relação do homem consigo mesmo se concretiza e objetiva primariamente através de sua relação com outros homens. Se, portanto, ele está relacionado com o produto de seu trabalho, seu trabalho objetificado, como com um objeto estranho, hostil, poderoso e independente, ele está relacionado de tal maneira que um outro homem, estranho, hostil, poderoso e independente, é o dono de seu objeto. Se ele está relacionado com sua atividade como com uma atividade não-livre, então está relacionado com ela como uma atividade a serviço e sob jugo, coerção e domínio de outro homem.

Toda auto-alienação do homem, de si mesmo e da natureza, aparece na relação que ele postula entre os outros homens, ele próprio e a natureza. Assim a auto-alienação religiosa é necessariamente exemplificada na relação entre leigos e sacerdotes, ou, já que aqui se trata de uma questão do mundo espiritual, entre leigos e um mediador. No mundo real da prática, essa auto-alienação só pode ser expressa na relação real, prática, do homem com seus semelhantes.

O meio através do qual a alienação ocorre é, por si mesmo, um meio prático. Graças ao trabalho alienado, por conseguinte, o homem não só produz sua relação com o objeto e o processo da produção como com homens estranhos e hostis, mas também produz a relação de outros homens com a produção e o produto dele, e a relação entre ele próprio e os demais homens. Tal como ele cria sua própria produção como uma perversão, uma punição, e seu próprio produto como uma perda, como um produto que não lhe pertence, assim também cria a dominação do não-produtor sobre a produção e os produtos desta. Ao alienar sua própria atividade, ele outorga ao estranho uma atividade que não é deste.

Apreciamos até aqui essa relação somente do lado do trabalhador, e posteriormente a apreciaremos também do lado do não-trabalhador.

Assim, graças ao trabalho alienado o trabalhador cria a relação de outro homem que não trabalha e está de fora do processo do trabalho, com o seu próprio trabalho. A relação do trabalhador com o trabalho também provoca a relação do capitalista (ou como quer que se denomine ao dono da mão-de-obra) com o trabalho. A propriedade privada é, portanto, o produto, o resultado inevitável, do trabalho alienado, da relação externa do trabalhador com a natureza e consigo mesmo.

A propriedade privada, pois, deriva-se da análise do conceito de trabalho alienado: isto é, homem alienado, trabalho alienado, vida alienada, e homem afastado.

Está claro que extraímos o conceito de trabalho alienado (vida alienada) da Economia Política, partindo de uma análise do movimento da propriedade privada. A análise deste conceito, porém, mostra que embora a propriedade privada pareça ser a base e causa do trabalho alienado, é antes uma conseqüência dele, tal e qual os deuses não são fundamentalmente a causa, mas o produto de confusões da razão humana. Numa etapa posterior, entretanto, há uma influência recíproca.

Só na etapa final da evolução da propriedade privada é revelado o seu segredo, ou seja, que é, de um lado, o produto do trabalho alienado, e do outro, o meio pelo qual o trabalho é alienado, a realização dessa alienação.

Esta elucidação lança luz sobre diversas controvérsias não solucionadas:

(1) A Economia Política inicia tomando o trabalho como a verdadeira alma da produção e, a seguir, nada lhe atribui, concedendo tudo a' propriedade privada. Proudhon, defrontando-se com essa contradição, decidiu em favor do trabalho contra a propriedade privada. Percebemos, contudo, que essa aparente contradição é a contradição do trabalho alienado consigo mesmo e que a Economia Política meramente formulou as leis do trabalho alienado.

Observamos, também, por conseguinte, que salários e propriedade privada são idênticos, porquanto os salários como o produto ou objetivo do trabalho, o próprio trabalho remunerado, são apenas conseqüência necessária da alienação do trabalho. No sistema de salários, o trabalho aparece não como um fim por si mas como o servo dos salários. Mais tarde nos entenderemos sobre isto, limitando-nos, aqui, a desvendar algumas das conseqüências (XXVI).

Um aumento de salários imposto (desprezando outras dificuldades, e especialmente a de que uma anomalia dessas só poderia ser mantida pela força) não passaria de uma remuneração melhor de escravos, e não restauraria, seja para o trabalhador seja para o trabalho, seu significado e valor humanos.

Mesmo a igualdade das rendas que Proudhon exige só modificaria a relação do trabalhador de hoje em dia com seu trabalho em uma relação de todos os homens com o trabalho. A sociedade seria concebida, então, como um capitalista abstrato.

(2) Da relação do trabalho alienado com a propriedade privada também decorre que a emancipação da sociedade da propriedade privada, da servidão, assume a forma política de emancipação dos trabalhadores; não no sentido de só estar em jogo a emancipação destes, mas por essa emancipação abranger a de toda a humanidade. Pois toda servidão humana está enredada na relação do trabalhador com a produção, e todos os tipos de servidão são somente modificações ou corolários desta relação.

Como descobrimos o conceito de propriedade privada por uma análise do conceito de trabalho alienado, com o auxílio desses dois fatores também podemos deduzir todas as categorias da Economia Política, e em cada uma, isto é, comércio, competição, capital, dinheiro, descobriremos só uma expressão particular e ampliada desses elementos fundamentais.

Sem embargo, antes de considerar essa estrutura, tentemos solucionar dois problemas.

(1) Determinar a natureza geral da propriedade privada como resultou do trabalho alienado, em sua relação com a propriedade humana e social genuína.

(2) Tomamos como fato e analisamos a alienação do trabalho. Como sucede, podemos indagar, que o homem aliene seu trabalho? Como essa alienação se alicerça na natureza da evolução humana? Já fizemos muito para resolver o problema, visto termos transformado a questão referente ã origem da propriedade privada em uma questão acerca da relação entre trabalho alienado e o processo de evolução da humanidade. Pois, ao falar de propriedade privada, acredita-se estar lidando com algo extrínseco à espécie humana. Mas, ao falar de trabalho, lida-se diretamente com a própria espécie humana. Esta nova formulação do problema já encerra sua solução.

ad (1) A natureza geral da propriedade privada e sua relação com a propriedade genuína.

Decompusemos o trabalho alienado em duas partes, que se determinam mutuamente, ou melhor, constituem duas expressões distintas de uma única relação. A apropriação aparece como alienação e alienação como apropriação; alienação como aceitação genuína na comunidade.

Consideramos um aspecto, o trabalho alienado, em seus reflexos no próprio trabalhador, isto é, a relação alienada do trabalho humano consigo mesmo. E constatamos ser corolário obrigatório dessa relação, a relação de propriedade do não-trabalhador com o trabalhador e com o trabalho. A propriedade privada, como expressão material sinóptica do trabalho alienado, inclui ambas as relações: a relação do trabalhador com o trabalho, com o produto de seu trabalho e com o não-trabalhador, e a relação do não-trabalhador com o trabalhador e com o produto do trabalho deste.

Já vimos que em relação ao trabalhador, que apropria a natureza por intermédio de seu trabalho, a apropriação se afigura uma alienação, a atividade própria como atividade para outrem e de outrem, a vida como sacrifício da vida, e a produção do objeto como perda deste para uma força estranha, um homem estranho. Consideremos, agora, a relação deste homem estranho com o trabalhador, com o trabalho e com o objeto do trabalho.

Deve ser observado, de início, que tudo que aparece ao trabalhador como uma atividade de alienação, aparece ao não-trabalhador como uma condição de alienação. Em segundo lugar, a atitude prática real do trabalhador na produção e face ao produto (como estado de espírito) afigura-se ao não-trabalhador, que com ele se defronta, como uma atitude teórica.

(XXVII) Em terceiro lugar, o não-trabalhador faz contra o trabalhador tudo que este faz contra si mesmo, mas não faz contra si próprio o que faz contra o trabalhador.

Examinemos mais de perto essas três relações.

[o manuscrito interrompe-se aqui]

TARIFA DA CAMARA OU CHANCELARIA APOSTÓLICA DE LEÃOX

1.º Todo o eclesiástico, que incorrer em pecado carnal, quer seja com freiras, quer com primas, sobrinhas, ou suas afilhadas, ou em fim com outra mulher qualquer, será absolvido mediante o preço de 67 libras e 12 soldos.

2.º Se o eclesiástico, além do pecado da carne, pedir para ser absolvido do pecado contra a natureza, deverá pagar 219 libras e 15 soldos.

3.º O padre que desflorar uma virgem pagará 2 libras e 8 soldos.

4.º A religiosa que quiser alcançar a dignidade de abadessa, depois de se haver entregue a um ou mais homens, simultaneamente ou sucessivamente, quer dentro, quer fora do convento, deverá pagar 131 libras e 15 soldos.

5.º Os padres que quiserem viver em concubinato com as suas parentes pagarão 76 libras e 1 soldo.

6.º Para todo o pecado de luxuria, cometido por um secular, a absolvição custará 27 libras e 1 soldo: porém para os incestos acrescerão, em consciência, 4 libras.

7.º A mulher adúltera que pedir a absolvição, e queira ficar livre de todo o processo, e ter licenças amplas para prosseguir nas suas relações ilícitas, pagará ao Papa 87 libras e 3 soldos. Em caso idêntico, o marido pagará igual quantia: se tiverem, porém, cometido incesto com suas filhas, ou filhos, acrescerão em consciência, 6 libras.

8.º A absolvição dum simples assassinato, cometido na pessoa dum secular, custará 15 libras, 4 soldos e 3 dinheiros.

9.º Se o homicida tiver assassinado dois homens num mesmo dia, pagará como se tivesse morto um só.

10.º O marido que der maus tratos a sua mulher pagará ao cofre da chancelaria 3 libras e 4 soldos. Se a matar, pagará 17 libras e 15 soldos, e se a matar para casar com outra, pagará ao cofre da chancelaria 32 libras e 9 soldos. Os que haverem coadjuvado o marido a perpetrar o crime, serão absolvidos, mediante a soma de 2 libras por cabeça.

11.º O que afogar um filho pagará 17 libras, e 15 (duas libras a mais do homicídio dum desconhecido), e se o pai e a mãe o matarem, com mutuo consentimento, pagarão 27 libras e 1 soldo pela absolvição.

12.º A mãe que destruir o seu próprio fruto, trazendo-o nas entranhas, e o pai que tiver contribuído para a perpetração desse infanticídio pagarão 17 libras e 15 soldos cada um. O que facilitar o aborto de uma criança que não seja sua, pagará 1 libra menos.

13.º Pelo assassinato de um irmão, duma irmã, dum pai ou de uma mãe, pagar-se-á 17 libras e 15 soldos.

14.º O que assassinar um bispo, ou um prelado de hierarquia superior, pagará 151 libras e 3 soldos pelo primeiro assassinato, e a metade pelos seguintes.

15.º Se o assassínio tiver dado morte a muitos eclesiásticos, por várias vezes, pagará 151 libras e 3 soldos pelo primeiro assassinato, e metade pelos outros.

16.º O bispo, ou abade, que cometer homicídio por emboscada, por acaso, ou por necessidade, pagará, para obter a sua absolvição, 179 libras e 14 soldos.

17.º O que antecipadamente quiser comprar a absolvição para todo o homicídio acidental que puder cometer no futuro, pagará 168 libras e 15 soldos.

18.º O herege que se converter, pagará pela absolvição 269 libras. O filho do herege queimado, enforcado, ou justiçado de outra forma qualquer, não poderá reabilitar-se senão mediante o preço de 118 libras, 16 soldos e 9 dinheiros.

19.º O eclesiástico que não podendo pagar as suas dívidas quiser librar-se de ser processado pelos credores, deverá pagar ao Pontífice 17 libras, 9 soldos e 7 dinheiros, e a dívida lhe será perdoada.

20.º A licença para poder pôr lugares de venda de vários géneros sob o pórtico das igrejas, será permitida mediante a soma de 45 libras, 19 soldos e 3 dinheiros.

22.º O delito de contrabando e defraudação dos direitos do príncipe, importará ao delinquente na soma de 87 libras e 3 dinheiros.

23.º A cidade que quiser alcançar para os seu cidadãos, ou para sacerdotes, frades ou freiras, licença para comer carne e lacticínios nas épocas defesas, pagará 731 libras e 10 soldos.

24.º O convento que quiser mudar de regra e viver em maior abstinência do que a prescrita, pagará 146 libras e 5 soldos.

25.º O apostata vagabundo, que quiser voltar ao redil, pagará igual quantia pela sua absolvição.

26.º A mesma soma pagarão os religiosos, tanto seculares como regulares, que quiserem viajar em trajes laicos.

27.º O filho bastardo de um cura que desejar ter a preferência em obter o curato de seu pai, pagará 27 libras e 1 soldo.

28.º O bastardo que quiser receber ordens sacras e auferir prebendas e benefícios pagará 15 libras 18 soldos e 6 dinheiros.

29.º O filho de pais incógnitos, que quiser tomar ordens, pagará ao tesouro pontifício 27 libras e 1 soldo.

30.º Os seculares raquíticos, ou aleijados, que quiserem receber ordens sacras e auferir benefícios, pagarão à chancelaria apostólica 58 libras e 2 soldos.

31.º Idêntica quantia pagará o torto do olho direito: porém o torto do olho esquerdo pagará ao Papa 10 libras e 7 soldos. Os seculares pagarão 45 libras e 3 soldos.

32.º Os eunucos que quiserem tomar ordens pagarão a soma de 300 libras e 15 soldos.

33.º O que quiser por simonia adquirir um, ou mais benefícios, dirigir-se-á aos tesouros do Papa que lhe venderão esse direito por um preço módico.

34.º O que por haver violado um juramento quiser livrar-se de toda a perseguição e de todo o labéu d'infâmia pagará ao Papa a soma de 131 libras e 15 soldos. Além disso pagará 3 libras a cada um dos que o tiver afiançado.

AGORA EIS AQUI, PARA MAIOR EDIFICAÇÃO DO LEITOR, A TARIFA QUE O SANTÍSSIMO PADRE JOÃO XXII ESTABELECERA:

TARIFA DA CHANCELARIA E PENITENCIÁRIA DE JOÃO XXII.

Pela absolvição do que tiver violado uma mulher numa igreja, ou cometido outros que tais sacrilégios, 6 gros.

Pela absolvição dum clérigo que mantiver concubinagem, com dispensa de irregularidade, e apesar das proibições provinciais, e sinodais, 7 gros.

Pela absolvição do que tiver cometido incesto com sua mãe, sua irmã, ou qualquer outra mulher que seja sua parente, por sangue ou aliança, ou com a sua madrinha, 6 gros.

Pela absolvição do que tiver desflorado uma virgem, 6 gros.

Pela absolvição de um perjúrio, 6 gros.

Pela absolvição do que tiver morto seu pai, sua mãe seu irmão, sua irmã, ou algum parente secular, 5 a 7 gros. pelo morto. (Se o assassínio for um parente, pertencente à Igreja, deverá o matador visitar a Santa Sé.)

Pela absolvição de um marido que tiver espancado sua mulher, e desse espancamento lhe haja resultado aborto, 6 gros.

Pela absolvição duma mulher, que servindo-se de uma beberagem, ou de outra qualquer trama, promover um aborto, 6 gros.

Nota. - No caso de que seja clérigo o homem que tiver administrado a beberagem, ou promovido o aborto, este crime será considerado como o de morte de secular, e a pena será a mesma.

Pela absolvição de pilhagens, incêndio, roubo e assassinatos de seculares com dispensa, 8 gros.

O exemplar desta tarifa existe na Biblioteca Nacional de Paris. Foi publicada pelo editor Toussaint-Denis, em 1520.

(*) In. "Os Mistérios da Igreja" de Léo Taxil e Karl Milo versão de Gomes Leal (1889)

O GÉNESIS

Jeová por alcunha - o Padre Eterno,

Deus muitíssimo padre e muito pouco eterno,

Teve uma ideia suja, uma ideia infeliz:

Pôs-se a esgravatar co’o dedo no nariz,

Tirou desse nariz o que o nariz encerra,

Deitou isso depois cá baixo, e fez-se a Terra.

Em seguida tirou da cabeça o chapéu.

Pô-lo em cima da Terra, e zás, formou o céu.

Mas o chapéu azul do Padre Omnipotente

Era um velho penante, um penante indecente,

Já muito carcomido e muito esburacado,

E eis aí porque o Céu ficou todo estrelado.

Depois o Criador (honra lhe seja feita!)

Achou a sua obra uma obra imperfeita,

Mundo sarrafaçal, globo de fancaria,

Que nem um aprendiz de Deus assinaria,

E furioso escarrou no mundo sublunar,

E a saliva ao cair na Terra fez o mar.

Depois, para que a igreja arranjasse entre os povos

Com bulas da cruzada, alguns cruzados novos,

E Tartufo pudesse inda dessa maneira

Jejuar, sem comer de carne à sexta-feira,

Jeová fez então para a crença devota

A enguia, o bacalhau e a pescada-marmota.

Em seguida meteu a mão pelo socavo,

Mais profundo e maior que a caverna de Caco,

E arrancando de lá parasitas estranhos,

De toda a qualidade e todos os tamanhos,

Lançou-os sobre a Terra, e deste modo insonte

Fez ele o megatério e fez o mastodonte.

Depois, para provar em suma quanto pode

Um Criador, tirou dois pêlos do bigode,

Cortou-os em milhões e milhões de bocados,

(Obra em que ele estragou quatrocentos machados)

Dispersou-os no globo, e foi desta maneira

Que nasceu o carvalho, o plátano e a palmeira.

..............................................................................

Por fim com barro vil, assombro da olaria!,

O que é que imaginais que o Criador faria?

Um pote? não; um bicho, um bípede com rabo,

A que uns chamam Adão e outros Simão. Ao cabo

O pobre Criador sentindo-se já fraco,

(Coitado, tinha feito o universo e um macaco

Em seis dias!) pensou: Deixemo-nos de asneiras,

Trago já uma dor horrível nas cadeiras,

Fastio... Isto dá cabo até de uma pessoa...

Nada, toca a dormir uma sonata boa!-

Descalçou-se, tirou os óc’los e o chinó,

Pitadeou com delícia alguns trovões em pó,

Abriu, para cair num sono repentino,

O alfarrábio chamado o livro do Destino,

E enflanelando bem a carcaça caduca,

com o barrete azul-celeste até à nuca,

Fez ortodoxamente o seu sinal da cruz

Como qualquer de nós, tossiu, soprou à luz,

E de pança pró ar, num repoiso bendito,

Espojou-se, estirou-se ao longo do infinito

Num imenso enxergão de névoa e luz doirada.

E até hoje, que eu saiba, inda não fez mais nada.

GUERRA JUNQUEIRO (1850/1923)

CIRCULAR

(FRAGMENTO)

Deus & filho. Bazar de fé. Venda forçada.

Pela barca de Pedro, a Judas consignada,

Chega um rico sortido em modas da estação.

Ver para crer! Surpresa! Atenção, ocasião

Única! Aproveitai, comprai! Pechincha certa!

Ao bazar do Calvário! Ao Nazareno! Alerta,

Cristãos! É o desfazer da feira. Último dia.

Toda a casta de objectos ou de quinquilharia

Que esteja em relação com negócios da Igreja.

Velas especiais para quando troveja,

Aplacando de pronto a cólera divina.

Sem cheiro e sem mistura alguma d’estearina.

Santa Bárbara, a quem a fé cristã se roja,

Quando atroa, não gasta as velas doutra loja

Nem outras recomenda o concílio de Trento.

Em pacotes de seis. Por junto, abatimento.

Água de Lourdes, fresca. Em pipas, ao quartilho

E em garrafa. Exigir a marca - Deus & Filho -

Na etiqueta, e na rolha, a fogo - Providência -

Genuína só a há à venda nesta agência.

Dez anos de sucesso e mil milhões de curas!

Eficaz contra a caspa e contra as mordeduras

De cobra cascavel ou cão danado ou pulga

Ou percevejo. Faz, Tartufo assim o julga,

Nascer ao mesmo tempo o apetite e o cabelo.

Boa no hemorroidal e útil no sarampelo.

Reumatismos, tercãs e outras moléstias várias

Cura-as num pronto. Expulsa as bichas solitárias

E expulsa o Demo. Purga: os ventres desentope-os

Sem cólicas, com três ou quatro semicúpios.

Em cegos de nascença e tísicos de peito

Isso então é instantâneo, é certo o seu efeito.

Uma perna amputada unta-se, e em dois instantes

Torna a crescer e fica inda maior que dantes.

Em leicenços não falha. Em dor de dentes, isso

É bebê-la e ficar sem dor. Não há feitiço

Que resista. Uma vez uma morta tomou-a,

Espirrou e ficou inteiramente boa!

Prevenimos no entanto o público defunto

Que casos destes há uns trinta e dois por junto

Apenas. Endireita a espinhela caída,

Extrai calos, reduz fleimões, prolonga a vida,

Não marca a roupa, e sem dano algum e sem fedor

Torna o cabelo e a barba à primitiva cor.

Relíquias. Sortimento a capricho. Em ossadas

Dos apóstolos, hoje as mais acreditadas

No mercado, chegou variedade infinita.

Cabeças de S. João, só vendo se acredita,

Onze mil! onze mil, e damo-las sem ganho!

Os preços é segundo o feitio e o tamanho.

(E convém declarar e advertir desde já

Que ossos de imitação não se encontram por cá.

Atestados legais e autênticos o provam).

Há um monumental e rico S. Cristóvão,

Oito metros de largo e uns oitenta de altura,

Que como não tem tido até hoje procura,

Decidimos vender para liquidação,

A retalho. É de graça: o quilo a meio tostão.

O público achará sempre neste bazar

De qualquer santo, ainda o mais particular,

Um esqueleto ou dois continuamente à venda.

Desejando porção, fazem-se de encomenda.

Desconto extraordinário em transacções por grosso.

Garante-se o fabrico e a solidez do osso

Que empregamos. A todo o esqueleto montado

Nesta casa vai junto, e em forma, um atestado

Escrito sobre a pel’ e pela própria mão

Do próprio santo, a quem a carcaça em questão

Pertencera, e que diz: - Eu juro à fé de Deus

Que estes ossos, tal qual estão, eram os meus. -

Aviso: é bom comprar peças sobressalentes.

Pelo menos um sacro, um nariz e alguns dentes.

Encontra-se também avulso qualquer delas:

Cóccix, peroneus, omoplatas, costelas.

Tíbias, tarsos, enfim tudo o que uma alma pia

Possa achar num manual cristão de osteologia.

Em dedos do Destino há um soberbo exemplar:

É o mesmo que escreveu outrora a Baltasar

No salão do festim a trágica sentença.

Dá-se por dez tostões essa caneta imensa.

Do destino há também o olho verdadeiro,

Em vidro ou em cristal, por dúzia ou por milheiro,

Negros, verdes, azuis, obra muito barata,

Engastados em oiro, em níquel ou em lata.

É hoje a grande moda, e são dum belo efeito

Para botões de punho e alfinetes de peito.

Há enfim mais de dez milhões de toneladas

De crânios sem valor, e de antigas ossadas

Que um caruncho roeu e converteu em cisco,

Como são vinte mil braços de S. Francisco,

Et cet´ra... Esse calcário, (inútil nesta casa)

Vende-se para esterco a três vinténs a rasa.

Vera cruz. Qualidade esplêndida, extrafina!

Autêntica; a melhor que vem da Palestina.

Em pó, em serradura, em lascas, aos bocados,

E posta em obra - desde a cama de casados,

Desde o piano d’Erard ou da credência até

Ao báculo do bispo e ao steech do crevé.

Trabalha a primor em mil objectos vários,

Em imagens do papa ou em boquilhas, em

Cabides, castiçais, presepes de Belém,

Bandejas para chá, agnus-Dei, crucifixos,

Lavatórios, etc. Ao rabais. Preços fixos.

Nos nossos armazéns com serras a vapor

Vendemo-la igualmente, a cruz do Redentor,

Em ripas, em pranchões e em traves colossais

Para marcenaria e construções navais.

Como hoje o negócio está muito bicudo,

Traspassa-se o armazém do Calvário com tudo

Que tem dentro. Escrever para o nosso bazar,

Largo dos Intrujões, 5, 1º andar.

GUERRA JUNQUEIRO (1850 - 1923)

O professor filósofo

Marquês de Sade

De todas as ciências que se inculca na cabeça de uma criança quando se trabalha em sua educação, os mistérios do cristianismo, ainda que uma das mais sublimes matérias dessa educação, sem dúvida não são, entretanto, aquelas que se introjetam com mais facilidade no seu jovem espírito. Persuadir, por exemplo, um jovem de quatorze ou quinze anos de que Deus pai e Deus filho são apenas um, de que o filho é consubstancial com respeito ao pai e que o pai o é com respeito ao filho, etc., tudo isso, por mais necessário à felicidade da vida, é, contudo, mais difícil de fazer entender do que a álgebra, e quando queremos obter êxito, somos obrigados a empregar certos procedimentos físicos, certas explicações concretas que, por mais que desproporcionais, facultam, todavia, a um jovem a compreensão do objeto misterioso.

Ninguém estava mais profundamente afeito a esse método do que o abade Du Parquer, preceptor do jovem conde de Nerceuil, de mais ou menos quinze anos e com o mais belo rosto que é possível ver.

— Senhor abade —, dizia diariamente o pequeno conde a seu professor — na verdade, a consubstanciação é algo que está além das minhas forças; é-me absolutamente impossível compreender que duas pessoas possam formar uma só: explicai-me esse mistério, rogo-vos, ou pelo menos colocai-o a meu alcance.

O honesto abade, orgulhoso de obter êxito em sua educação, contente de poder proporcionar ao aluno tudo o que poderia fazer dele, um dia, uma pessoa de bem, imaginou um meio bastante agradável de dirimir as dificuldades que embaraçavam o conde, e esse meio, tomado à natureza, devia necessariamente surtir efeito. Mandou que buscassem em sua casa uma jovem de treze a quatorze anos, e, tendo instruído bem a mimosa, fez com que se unisse a seu jovem aluno.

— Pois bem —, disse-lhe o abade — agora, meu amigo, concebei o mistério da consubstanciação: compreendeis com menos dificuldade que é possível que duas pessoas constituam uma só?

Oh! meu Deus, sim, senhor abade — diz o encantador energúmeno —, agora compreendo tudo com uma facilidade surpreendente; não me admira esse mistério constituir, segundo se diz, toda a alegria das pessoas celestiais, pois é bem agradável quando se é dois a divertir-se em fazer um só.

¾ Dias depois, o pequeno conde pediu ao professor que lhe desse outra aula, porque, conforme afirmava, algo havia ainda "no mistério" que ele não compreendia muito bem, e que só poderia ser explicado celebrando-o uma vez mais, assim como já o fizera. O complacente abade, a quem tal cena diverte tanto quanto a seu aluno, manda trazer de volta a jovem, e a lição recomeça, mas desta vez, o abade particularmente emocionado com a deliciosa visão que lhe apresentava o belo pequeno de Nerceuil consubstanciando-se com sua companheira, não pôde evitar colocar-se como o terceiro na explicação da parábola evangélica, e as belezas por que suas mãos haviam de deslizar para tanto acabaram inflamando-o totalmente.

— Parece-me que vai demasiado rápido —diz Du Parquet, agarrando os quadris do pequeno conde — muita elasticidade nos movimentos, de onde resulta que a conjunção, não sendo mais tão íntima, apresenta bem menos a imagem do mistério que se procura aqui demonstrar. Se fixássemos, sim... dessa maneira, — diz o velhaco, devolvendo a seu aluno o que este empresta à jovem.

— Ah! Oh! meu Deus, vós me fazeis mal

— diz o jovem — mas essa cerimônia parece-me inútil; o que ela me acrescenta com relação ao mistério?

-- Por Deus! — diz o abade, balbuciando de prazer — não vedes, caro amigo, que vos ensino tudo ao mesmo tempo? É a trindade, meu filho... é a trindade que hoje vos explico; mais cinco ou seis lições iguais a esta e sereis doutor na Sorbonne.

Tradução Edgar Assis de Carvalho (PUC-SP)

A VERDADE(1)

Qual é essa quimera impotente e estéril

Essa divindade que aos imbecis apregoam

Uma cambada odiosa de padres impostores?

Querem tornar-me num dos seus sectários?

Ó! nunca, juro-o e cumprirei a minha palavra,

Nunca esse bizarro e nojento ídolo,

Esse filho do delírio e do escárnio,

Impressionará minimamente o meu coração.

Contente e orgulhoso do meu epicurismo,

Pretendo expirar no seio do ateísmo.

E que o Deus infame com que pretendem

(assustar-me

Nunca eu o conceba senão para o blasfemar.

Sim, vã ilusão, a minha alma detesta-te,

E para que te convenças aqui o proclamo.

Gostaria que pudesses viver por um momento

Para gozar o prazer de melhor te insultar.

Qual é, com efeito, esse execrável fantasma,

Esse Deus cagão, esse ser pavoroso

Que não se deixa ver nem dá sinal de vida,

Que o insensato teme e de quem o sábio ri,

Que não fala aos sentidos e que ninguém pode

(compreender,

Cujo culto selvagem fez derramar entre nós,

Desde sempre, mais sangue que a guerra

Ou a fúria de Témis em mil anos?

Por mais que analise este deifico tratante,

Por mais que o estude, o meu olho filosófico

Não vê neste motivo das vossas religiões

Senão um conjunto impuro de contradições

Que não resiste a um exame sério,

Que podemos insultar, desafiar, ultrajar à vontade.

Fruto do temor, criado pela esperança,

Inconcebível para o nosso espírito,

Tornando-se consoante a mão que o brande

Objecto de terror, de alegria ou de vertigem,

Que o hábil impostor que o anuncia aos

(humanos

Faz reinar como quer sobre os nossos destinos,

Descrevendo-o ora como mau, ora como

(bonacheirão,

Ora massacrando-nos ora servindo-nos de pai,

Atribuindo-lhe sempre, segundo as suas paixões,

Os seus costumes, o seu carácter e as suas

(opiniões,

Quer a mão que perdoa, quer a que nos trespassa.

Ei-lo, esse Deus idiota com que nos engana

(o padre.

Mas com que direito pretende submeter-me

Ao seu erro aquele que a mentira escraviza?

Necessitarei acaso do Deus de que abjura

A minha razão para aceitar as leis da natureza?

Nela tudo se move, e o seu seio criador

Age continuamente sem a ajuda de um motor.

Que ganharia eu com essa segunda dificuldade?(2)

Demonstrará esse Deus a causa do Universo?

Se cria, foi criado e eis-me de novo incerto

Como antes de recorrer a ele.

Foge, foge para longe, impostura infernal;

Cede, desaparecendo, às leis da natureza:

Ela faz tudo por si própria, tu não passas do vazio

Onde a sua mão nos foi buscar quando nos criou.

Some-te pois, execrável quimera!

Foge para longe, abandona a terra,

Onde não encontrarás senão corações

(empedernidos

Pela algaraviada mentirosa dos teus míseros amigos!

Quanto a mim, confesso, o ódio que te tenho

É ao mesmo tempo tão certo, tão grande e tão forte

Que seria com prazer, Deus vil, e sem pressas,

Que me masturbaria sobre a tua divindade,

Ou enrabar-te-ia, se a tua frágil existência

Pudesse oferecer um cu à minha incontinência.

Depois arrancar-te-ia com força o coração

Para melhor te compenetrares do meu profundo

(horror.

Mas seria em vão que se procuraria atingir-te,

A tua essência escapa a quem a quer coagir.

Não podendo esmagar-te, pelo menos entre

(os mortais,

Gostaria de destruir os teus perigosos altares

E demonstrar àqueles que um Deus ainda cativa

Que esse aborto covarde que a sua fraqueza adora

Não pode pôr termo às paixões.

Ó sagrados movimentos, orgulhosas impressões,

Sede pra sempre objecto das nossas

(homenagens

As únicas dignas do culto dos verdadeiros sábios,

As únicas que sempre deleitaram os nossos

(corações

As únicas que a natureza proporciona à nossa

(felicidade

Cedamos à sua autoridade, e que a sua violência

Subjugando os nossos espíritos sem resistência

Faça dos nossos prazeres leis, impunemente:

O que a sua voz prescreve são os nossos desejos,

Seja qual for a desordem para que nos arraste,

Devemos ceder-lhes sem remorsos e sem

(dificuldade

E, sem consultar as nossas leis ou costumes,

Entregarmo-nos com ardor a todos os erros

Que pela sua mão a natureza sempre nos ditou.

Nunca respeitemos senão o seu divino murmúrio;

O que em todos os países as nossas leis vãs punem

Foi sempre o que melhor serviu os seu desígnios.

O que parece ao homem uma cruel injustiça,

Não passa do efeito da sua mão corrupta sobre nós,

E quando, por força do hábito, tememos vacilar

Só conseguimos acolhê-la ainda melhor.

Essas doces acções a que chamais crimes,

Esses excessos que os parvos julgam ilegítimos,

São apenas os desvios que lhe agradam,

Os vícios, as tendências que mais aprecia;

O que ela grava em nós é sempre sublime,

Aconselhando o horror, ela designa a vítima:

Golpeêmo-la sem temor e não receemos

Ter cometido uma perversidade, cedendo.

Examinemos o raio nas suas mãos sanguinárias;

Ele fulmina ao acaso, os filhos, os pais,

Os templos, os bordéis, os beatos, os bandidos,

Tudo serve à natureza: precisa de delitos.

Do mesmo modo a servimos ao cometer um crime:

Quanto mais o propagamos, mais ela o adora.

Usemos os direitos poderosos que exerce sobre nós

Entregando-nos sem fim aos gostos mais

(monstruosos:

Nenhum é proibido pelas suas leis homicidas,

E o incesto, a violação, o roubo, os parricídios,

Os prazeres de Sodoma, os jogos de Safo,

Tudo o que faz mal ao homem ou o mata

É, podeis crer, um meio de lhe agradar.

Destronando os deuses, roubemo-lhes o trovão.

E com esse raio faiscante destruamos tudo

O que nos desagrada neste mundo assustador.

Sobretudo não poupemos nada; que as suas

(próprias

Atrocidades sirvam de exemplo às nossas piores

(proezas

Não há nada sagrado: tudo neste universo

Se deve vergar perante os nossos fogosos caprichos.

Quanto mais multiplicarmos, diversificarmos

(a infâmia,

Mais a sentiremos fortalecida nas nossas almas,

Duplicando, encorajando as nossas cínicas

(experiências

Conduzindo-nos, dia a dia, passo a passo,

(à malvadez.

Após os melhores anos, se a sua voz volta

(a chamar-nos

Regressemos a ela fazendo pouco dos deuses,

O seu cadinho espera-nos para nos recompensar;

O que o seu poder nos tirou, a sua necessidade

(devolve-nos,

Nela tudo se reproduz, tudo se regenera:

Dos grandes como dos pequenos a puta é a mãe

E aos seus olhos somos todos queridos,

Monstros e malvados ou bons e virtuosos.



(1) A VERDADE, poema em versos alexandrinos, em rima

emparelhada, foi escrita em 1787

(MARQUÊS DE SADE 1740-1814)

A MULHER E A IGREJA

"A língua da mulher não cala, nem mesmo depois de cortada" S.Gregório

"A mulher é a arma do diabo" Santo António

"Sem a intervenção da mulher nunca o Diabo levaria os homens de vencida" Santo António

"A mulher é o isco venenoso de que se serve o Diabo para se apoderar das nossas almas" S. Cipriano

"A mulher é o dardo agudo do Demónio que por ela venceu Adão, fazendo-lhe perder o Paraíso" S.Bernardo

"A mulher tem o veneno de uma áspide e a malícia de um dragão" S. Gregório

"De todas as bestas ferozes nenhuma é mais perigosa que a mulher" S. João Crisóstomo

"A mulher é uma ténia furiosa que tem sede no coração do homem" S. João Damasceno

"É um problema saber se as mulheres ressuscitarão no seu sexo. Seria de recear que nos induzíssemos à tentação diante do próprio Deus" Santo Agostinho

"O homem não foi tirado da mulher mas a mulher do homem" S. Paulo, 1ª corintos XI-7

"Não permito que a mulher ensine" S. Timót. 1ª II-11

"Nem ensine nem cante nas igrejas o que seria torpeza" Corint.1ª XIV-35

"Nem tenha a cabeça descoberta, porque não só a voz mas também os cabelos da mulher são coisas indecentes" S. Paulo

"Digo que bom seria a um homem nunca tocar mulher alguma"

Paulo Corint. I VII-1 e 26

"A mulher cujos lábios são como o favo que destila o mel, mas o seu fim é amargo como o absinto, talhante como a espada de dois gumes, os passos dela penetram até ao inferno e aquele que chegar a ela nunca mais fica limpo" Salomão



O capitulo X da sessão 25 do Concílio de Trento, não confia às mulheres nem mesmo a santa eucaristia.

LE BARRE foi Condenado a ter a língua cortada cabeça decepada e lançado às chamas, por não ter tirado o chapéu à passagem duma procissão. (cavaleiro Francês)

PADRES

PADRES: Designam-se por este nome todos os que preenchem as funções dos cultos religiosos estabelecidos entre os diferentes povos da terra.

O culto exterior pressupõe cerimónias cuja finalidade é impressionar os sentidos dos homens e incutir-lhes a veneração pela divindade a que prestam as suas homenagens. Tendo a superstição multiplicado as cerimónias dos vários cultos, não tardou que as pessoas destinadas a preenchê-las formassem uma ordem separada unicamente destinada ao serviço dos altares; achou-se que os que se tinham encarregado de cuidados tão importantes deviam entregar-se totalmente à divindade; desde então, partilharam com ela o respeito dos humanos; as ocupações vulgares pareceram ser-lhes inferiores, e os povos julgaram-se obrigados a prover à subsistência dos que estavam empossados do mais santo e mais importante dos ministérios; estes últimos, fechados nos seus templos, comunicaram pouco entre si, o que deve ainda ter aumentado o respeito que se tinha por esses homens isolados; foi-se generalizando o costume de os considerar como favoritos dos deuses, como os depositários e os interpretes das suas vontades.

É agradável dominar os seus semelhantes; os padres souberam aproveitar a alta consideração que tinham feito nascer nos espírito dos seus concidadãos; afirmaram que os deuses se lhes manifestavam; anunciaram os seus decretos; ensinaram dogmas; prescreveram aquilo em que era preciso acreditar e o que era preciso rejeitar; fixaram o que agradava ou desagradava à divindade; deram oráculos, predisseram o futuro ao homem inquieto e curioso, fizeram-no tremer pelo medo dos castigos com que os deuses irritados ameaçavam os temerários que ousassem duvidar da sua missão ou discutir a sua doutrina.

Para mais solidamente estabelecer o seu poder, descreveram os deuses como cruéis, vingativos, implacáveis; introduziram cerimónias, iniciações, mistérios, cuja atrocidade pode alimentar nos homens aquela melancolia sombria, tão favorável ao domínio do fanatismo; então o sangue humano correu em grandes quantidades sobre os altares, os povos subjugados pelo medo e embriagados de superstição nunca pensaram pagar tão caro a benevolência celeste: as mães entregaram sem lágrimas os seus tenros filhos às chamas devoradoras; milhares de vítimas humanas caíram sob os golpes dos sacrificadores; deu-se a submissão a uma multidão de ritos e as mais absurdas superstições acabaram por estender e fortalecer o seu domínio.(...)

Os povos teriam sido muito felizes se os padres da impostura tivessem sido os únicos a abusar do poder que o seu ministério lhes dava sobre os homens; apesar da submissão e da doçura, tão recomendada pelo Evangelho, viu-se em séculos de trevas, padres do Deus da paz arvorar o estandarte da guerra; armar súbditos contra os soberanos; ordenar insolentemente aos reis que descessem do trono; arrogar-se o direito de romper os laços sagrados que unem os povos aos seus mestres; chamar tiranos aos príncipes que se opunham aos seus audaciosos empreendimentos; pretender para eles próprios uma independência quimérica das leis feitas para obrigar igualmente todos os cidadãos. Essas vãs pretensões foram algumas vezes cimentadas com vagas de sangue: estabeleceram-se por causa da ignorância dos povos, da fraqueza dos soberanos e da habilidade dos padres; estes últimos conseguiram muitas vezes manter os seus direitos usurpados; nos países onde está estabelecida a medonha inquisição, ela encarrega-se de fornecer frequentes exemplos de sacrifícios humanos, nada inferiores à barbárie das dos padres mexicanos. Isto não acontece nas regiões esclarecidas pelas luzes da razão e da filosofia, pois o padre aí nunca esquece que é homem, súbdito e cidadão.

(D'HOLBACH 1723-1789 'In A ENCICLOPÉDIA')

EXAME DAS PROVAS DA EXISTÊNCIA DE DEUS

Platão, esse grande criador de quimeras, disse que aqueles que só admitem o que podem ver e apalpar são estúpidos e ignorantes pois se recusam a admitir a realidade das coisas invisíveis. Os nossos teólogos falam-nos a mesma linguagem: as religiões europeias foram visivelmente infectadas pelas fantasias platónicas, que são sem dúvida alguma o resultado de noções obscuras e da metafísica ininteligível dos padres egípcios, caldeus, assírios aos quais Platão foi beber a sua pretendida filosofia. Na verdade, se esta consiste no conhecimento da natureza, somos forçados a concordar que a doutrina platónica não merece realmente tal nome, visto que afinal afastou o espírito humano da natureza visível para o lançar no mundo intelectual, onde só se encontrou quimeras. Contudo é esta filosofia fantástica que regula ainda todas as nossas opiniões. Os nossos teólogos, guiados pelo entusiasmo de Platão, só entretêm os seus espectadores com espíritos inteligências de substância incorporais, potências invisíveis, Anjos, Demónios, virtudes misteriosas, efeitos sobrenaturais, iluminações divinas, ideias inatas, etc. A acreditarmos neles, os nossos sentidos são-nos inteiramente inúteis; a experiência não serve para nada; a imaginação, o entusiasmo, o fanatismo, e os movimentos de receio que os preconceitos religiosos fazem nascer em nós, são inspirações celestes, advertências divinas, sentimentos sobrenaturais que devemos preferir à razão, ao juízo, ao bom senso. Depois de nos terem imbuído desde a infância com tais máximas para nos ofuscarem e cegarem, fácil é convencerem-nos dos maiores absurdos, dando-lhe o impotente nome de Mistérios, e impedindo-nos de examinar aquilo em que querem que acreditemos.

Seja como for, responderemos a Platão e a todos os Doutores que, como ele, nos impõe a necessidade de acreditar o que não podemos compreender, que para aceitar que uma coisa existe é preciso ter dela alguma ideia; que esta ideia só nos pode chegar pelos sentidos; que tudo o que os sentidos nos não dão a conhecer é como se não existisse; e se é absurdo negar a existência do que se não conhece, mais extravagante é conceder-lhe qualidades desconhecidas, e estúpido tremer em frente de fantasmas, ou respeitar vãos ídolos revestidos de qualidades incompatíveis combinadas pela nossa imaginação que nunca consultou nem a experiência nem a razão.

D`HOLBACH 1723-1789-(O Sistema da Natureza, 2ª parte, cap. IV)

DIDEROT

OBJECÇÕES AOS ARGUMENTOS DUM CRENTE(*)

(*) As passagens que reunimos com este título são extractos da obra de Georges May: Francois Hemsterhuis, Letter sul L`Homme et ses rapports avec commentaire, inédito de Diderot, P.U.F. (1964), pp. 216-217, 218-219, 360-363, 443-445 e 447. As passagens em itálico são citações de Hemsterhuis. (Roland Desné)

"...Para formar este globo ocular foi necessário uma geometria tão prodigiosamente transcendente e profunda, que ultrapassa infinitamente todo o esforço do espirito humano..."

Não é em consequência destas leis que o olho existe, mas é por ser olho que corresponde a essas leis. Se lhes não correspondesse e não fosse o que é, seria outra coisa com que também ficaria satisfeito, pois tratar-se-ia nesse caso de uma outra espécie de ser ou animal. Se tal órgão fosse particularmente necessário à sua existência, e lhe faltasse, não poderia continuar a existir.

A natureza só permite que subsistam os apologistas; extermina todos os censores. E fá-lo mais ou menos rapidamente; e isso tanto pelos vícios como pelas deficiências de organização.

O invejoso é um monstro que não poderia persistir; o voluptuoso outro monstro transitório, se esses vícios forem contrários à organização.

"Esta prodigiosa modificação() deve ter ocorrido no primeiro embrião, ou no primeiro indivíduo..." (Diderot propõe ao seu correspondente holandês substituir esta palavra imprópria por "disposição" "arranjo". Continua a tratar-se da estrutura do olho.)

Não sei o que seja o primeiro indivíduo. Nada compreendo acerca do primeiro embrião; e muito menos de um embrião que contem um olho completo. A geração animal não se processou assim. E também não sei o que era o animal há algumas centenas de biliões de anos, como não sei aquilo em que se há-de tornar dentro de outras centenas de biliões de anos.

Se este olho, esta máquina admirável, tivesse sido feita de uma só vez, o seu mecanismo seria ainda mil vezes mais surpreendente do que o absurdo de admitir a matéria produzida por um agente imaterial.

Se aquilo a que se chama a essência divina se combina com a essência material, Deus e a matéria formam um todo de que eu sou uma parte.

Se a heterogenidade não comporta qualquer combinação, se as essências são incompatíveis, não há nem criador nem formador.

"...Os nossos deveres para com Deus consistem... 1.º No culto que deriva da admiração e do amor que necessariamente se sucedem à contemplação reflectida, ou então da sensação moral da presença de todo esse Ser imenso."

Não podemos admirar aquilo de que não conhecemos, nem o conjunto, nem as partes, nem o fim.

Não devemos admirar o que não custou ao seu autor nem se quer um sopro.

Se me vir levantar um rochedo com uma enorme alavanca, não ficará admirado, principalmente se a invenção e construção dessa alavanca não me tiver custado nada. Não merecerei a sua admiração se fizer saltar uma cidade por meio de pólvora. E ainda me admiraria menos se necessariamente produzisse todos esses efeitos, em virtude de uma consequência forçada da minha natureza.

Admiro um homem porque sou um homem. Se um homem for capaz de transportar o fardo duma mula fico admirado porque ele não é uma mula. Mas a mula não me causa espanto.

Quanto ao amor, é referido ao valor da existência de cada indivíduo. O mau que goza uma existência feliz pode amá-la. Mas não percebe o amor de um inocente que sofre e do bom acabrunhado pela desgraça.

O tirano que nasce sem sensibilidade, receado, venerado, adorado, exprimindo à sua vontade toda a espécie de desejos que mal surgem são logo satisfeitos, passando bem sem remorso nem receio primeiro porque é intrépido, segundo porque o órgão moral não existe nele, e não o apoquentam nem doenças morais nem físicas, esse sim pode amá-la. Estou de acordo. Este nosso mundo parece ter sido criado para ele.

Aliás que se importa Deus com o amor e a admiração? Para que precisa delas? Que motivo tem para as exigir? Quantas vezes a ignorância não as tornou mais ridículas ou tolas? Qual a vantagem de um acto estéril, tanto para quem o produz como para aquele aquém se destina? A noção de dever é sempre indivisível do de felicidade. E que felicidade pode resultar duma acção perfeitamente estéril? Quando a afirmo indivisível da de felicidade, entendo felicidade referida a qualquer ser que seja objecto e termo dela.

Se as grandes acções dos homens que já não existem fossem absolutamente inimitáveis e por consequência impraticáveis pelos homens que são ou hão-de ser, transmudariam-se em contos de fadas que só acordariam em nós admiração pueril, semelhante ao terror que uma boa velhinha provoca nas crianças, quando lhes fala de feitiçarias, e lhes faz ressoar aos ouvidos o ruído de invisíveis cadeias, etc.....

"...Como aquele que puder tornar ridículo o seu adversário terá no nosso tempo muito mais vantagens do que aquele que só souber enegrecê-lo; daí resultará (Os pretendidos filósofos obterem) a provável superioridade: o que oferece o aspecto feio e triste dum conjunto de homens, onde já não haverá nem costumes nem religião a menos que se consiga(...) tornar as verdades filosóficas tão palpáveis e tão populares que os miseráveis sofismas (dos pretendidos filósofos) nem convençam crianças."

Confesso-lhe que penso não ser isso difícil aos filósofos se acaso pretenderem ocupar-se a sério do assunto, e se se lhes permitir a mesma liberdade de escrever que se concede aos seus adversários.

E, senhor, não pense que o ridículo é assim tão temível; acaba sempre por cair sobre quem não tem razão. O ponto importante é tê-la.

O opúsculo intitulado Bom Senso (Trata-se do livro de d`Holbach) causará mais mal ou mais bem do que todos os gracejos de Voltaire.

Mas não acha estranho que a observação duma criança se torne tantas vezes embaraçosa para o mais hábil dos homens, e que sejam precisos vários volumes para responder a quatro palavras? "Se tem de haver mal no mundo, se um só inocente pode sofrer, e um mau prosperar, então mais valia não o Ter criado."

Aqui está o que diria uma criança.

E um Leibniz vê-se obrigado a escrever volumes para resolver uma dificuldade que todo o mundo conhece, volumes esses que quase ninguém entende, e baseados em ideias tais como a mónada, a harmonia preestabelecida e outras visões.

Uma criança diz: "Em Deus clemência e justiça são incompatíveis; e um perspicaz doutor terá muita dificuldade em as conciliar.

Uma criança diz: "Se Deus está em toda a parte é extensão; se é extensão, tem largura comprimento e altura; portanto é matéria". E os mais profundos metafísicos ainda não resolveram esta dificuldade. E como este caso mil outros.

Parece-me que quando se encontram tantas insuficiências seria lícito esperar indulgência para os adversários.

Sem duvida que devemos detestar os destruidores da moral, mas esta é completamente independente das opiniões religiosas. Os primeiros gregos veneraram alguns celerados como divindades, e não deixaram de ser pessoas honestas. O mesmo ocorreu com os primeiros Romanos.

Mas tenho de acabar; o que lhe estou a dizer sabe-o também como eu. Se o problema fosse simples como pretende provar a sua obra seria mais fácil de perceber. Apenas os seus adversários, bastante versados em tais matérias, poderão lê-la correctamente. O que fica demonstrado com os seus improfícuos esforços e todas as objecções levantadas pela obra em questão.

Comentário Inédito da Carta sobre o homem (de Hemsterhuis) 1773-1774. Ed. G. May,

Diderot (1713-1784) - Este comentário foi encontrado recentemente nos Estados Unidos por Georges May, professor na Universidade de Yale, dirigido ao filósofo holandês adversário do materialismo e do ateísmo, Hemsterhuis (1721-1790).